Faz parte da faina midiática conviver com a má vontade, a falta de reconhecimento público. Mal comparando, seu desempenho está sujeito à mesma implicância e intolerância normalmente encarnada pelo árbitro de futebol, para quem o máximo da aprovação é passar despercebido aos olhos de uma platéia condicionada a reagir muito mais à base da emoção do que pela razão. Sem falar nas generalizações que tendem a transformar tudo em farinha do mesmo saco, quando se toma o todo pelo individual, a regra geral pela exceção, face à conveniência de uma estigmatização que sempre servirá para expiar culpas e delitos inconfessáveis.
Assim como é raro o jogo em que os derrotados não lancem mão do manjado expediente de culpar a arbitragem, na vida pública é praxe que a imprensa arque com o ônus dos podres que divulga. Trocando em miúdos, além de veicular, denunciar, exige-se que o tom seja apropriado, no diapasão certo. Como se isto fosse possível num contexto político de cartas marcadas em que nem sempre é a realidade que conta, mas no que se quer acreditar.
Basta ver que mesmo em exemplos de escandalosa bandalheira, para dizer o mínimo – como a farra dos cartões corporativos – não falta quem considere perseguição o justificado alarde feito pela mídia. Racismo, má vontade para com o governo, são as alegações apresentadas em desagravo a Matilde Ribeiro, que por conta disso demitiu-se do esdrúxulo ministério criado para promover a igualdade racial no país. Da mesma forma como na semana anterior a repercussão dos depoimentos auto-incriminatórios de alguns indiciados no mensalão – pelo menos no que tange à existência do caixa 2 petista – foi recebida com ressalvas nas hostes governistas. Mais especificamente, em relação à forma como o Jornal Nacional, da TV Globo, enfocou as contradições do ex-secretário do partido, Silvio Pereira, acerca do envolvimento na trama do então ministro da Casa Civil, José Dirceu, a quem reivindicam, ora pois, equanimidade de tratamento.
Prevaricadores convictos
Como sempre, a jogada consiste em tentar desviar o foco dos fatos desabonadores que continuam vindo à tona, mediante a perfunctória teoria do complô midiático, ou seja, a velha conversa para boi dormir que mesmo os mais desavisados não engolem mais. Ainda mais com o matreiro artifício de atrelar as mazelas e vicissitudes atuais à suposição de que tudo teve origem no governo anterior. Como no caso dos cartões corporativos, introduzido por FHC em 2001 e que, sob Lula, para variar, viraram mais um escândalo de proporções grandiosas, altamente lesivas ao erário público. E isto que destinado apenas a despesinhas extras – salário, ajuda de custo, verba de representação e outras subvenções à parte, of course.
A diferença é que desta vez não vai ser possível responsabilizar a imprensa pela repercussão para lá de negativa que esse novo esbulho vem despertando. Até porque, para cúmulo da ironia, a lebre foi levantada pelo portal criado pelo próprio governo para manter a sociedade informada dos gastos da máquina administrativa. O que torna a coisa ainda mais revoltante, pois denota um descaso, um desprezo pelo risco de ser flagrado típico de meliantes profissionais, se é que já não estamos falando deles. De prevaricadores convictos, em todo caso, a própria pivô da crise encarregou-se de vestir a fantasia ao dizer que não se arrepende de nada e que faria tudo outra vez.
A sobra dos tucanos
O curioso é que talvez nunca a imprensa teve seu trabalho tão facilitado como nesta nova tunga, com tudo esmiuçado e disponível no site governamental, dos 8 reais gastos em tapioca pelo ministro dos Esportes, Orlando Silva, aos milhões despendidos pelas grandes corporações, funcionários graduados e seus serviçais, tudo às expensas da perdulária gestão administrativa do atual governo. Que com esta e outras liberalidades fez com que os gastos públicos quase dobrassem desde que Lula assumiu, contrastando com a avareza que vem pautando os investimentos nos setores mais carentes da sociedade. Mas nestas de azeitar a máquina petista, eis que mais uma vez os comensais se excedem no rega-bofe e um novo escândalo vai para a coleção do lulismo.
Pois é, como se já não bastassem as incertezas que turvam os horizontes neste início de ano, mormente o fantasma da recessão que ameaça os Estados Unidos e que já vem causando danos consideráveis às bolsas e colocando em xeque a economia dos países exportadores, tudo indica que o ambiente político, relativamente tranqüilo desde o arranca-rabo da CMPF, viverá dias agitados até baixar a densa poeira que a farra dos cartões está levantando.
Sim, porque as denúncias não devem parar por aí. Ao contrário, todo dia surgem novas extravagâncias – como o 1 milhão de reais torrado na suntuosa decoração da cobertura do reitor da UnB – e é possível que sobre até para o governo anterior e para a oposição em função de gastos exorbitantes com combustível atribuídos ao ex-presidente FHC e mesmo os 108 milhões de reais consumidos no ano passado pelo governo tucano em São Paulo sob a rubrica de despesas miúdas. Aliás, nada mais justo, pois não pode haver imunidade em se tratando de falcatrua.
Chafurdando na lama
Um capítulo à parte é a verdadeira caixa-preta representada pelos 3,7 milhões de reais consumidos pelas famílias dos dois chefes de Estado, distribuídos em dez cartões, mas cujo detalhamento, este sim, é mantido sob sigilo. Prerrogativa obviamente questionável e que, a rigor, só serve para reforçar as suspeitas sobre as mordomias palacianas que, de acordo com outras fontes, estariam perto do sacrilégio. Como, aliás, sugere o gasto de 50 mil reais correspondente à segurança de uma das filhas do presidente.
Motivo a mais para que a imprensa, não obstante a tosca regulamentação do uso do cartão, seja criteriosa na diferenciação do que pode ser considerado gasto aceitável do abusivo, para que se possa separar o joio do trigo e evitar julgamentos precipitados e levianos, injustiças, enfim, impedir que os bons paguem pelos maus.
E, é claro, que se dê curso às investigações, doa a quem doer, pois a sociedade está cansada de ver a sujeira sendo sistematicamente varrida para debaixo do tapete sem que os saqueadores dos cofres públicos sejam devidamente punidos, já que escudados por meandros jurídicos que, a bem da moralização do país, precisam ser urgentemente revistos. Sem leis mais rígidas e o fim da impunidade, o país vai continuar chafurdando num mar de lama que a cada governo parece mais fétido.
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Jornalista, Santos, SP