O dia 3 de novembro de 2020 é mais um daqueles para ficar marcado nos anais do jornalismo brasileiro. A partir de uma matéria publicada às 2h04 da madrugada pelo The Intercept Brasil, como o título “Julgamento de influencer Mariana Ferrer termina com sentença inédita de ‘estupro culposo’ e advogado humilhando jovem”, as mais diversas reações brotaram país à fora, fossem nas redes sociais digitais, nas páginas online dos principais veículos de imprensa e nas manchetes dos telejornais matutinos.
No início da manhã, os termos #EstuproCulposo, #JusticaPorMariFerrer e #Mariana estavam encabeçando internacionalmente os trend topics do Twittter, à frente de termos como #ElectionDay, #Election2020 e #VoteBidenHarrisToSaveAmerica, mesmo com aquela terça-feira sendo o dia da eleição mais acirrada para a Presidência dos Estados Unidos dos últimos anos.
Não haverá aqui ponderações sobre o show de horrores que representa esse famigerado processo judicial, com mais uma tradicional culpabilização da vítima e liberação do réu rico com a pífia justificativa de falta de provas. Também não será abordada a repercussão do caso nas redes sociais digitais. Este espaço é para colaborar na reflexão sobre um cotidiano procedimento jornalístico: a espetacularização e o sensacionalismo das manchetes.
A referência ao tal “estupro culposo”, que gerou tantas reações — inclusive com manifestações oficiais nas altas esferas dos poderes Judiciário e Legislativo — aparece na matéria da jornalista Schirlei Alves logo em seu segundo parágrafo:
Segundo o promotor responsável pelo caso, não havia como o empresário saber, durante o ato sexual, que a jovem não estava em condições de consentir a relação, não existindo, portanto, intenção de estuprar — ou seja, uma espécie de “estupro culposo”. O juiz aceitou a argumentação.
Como já foi alertado, não serão tratadas aqui as regras legais, nem o que fizeram ou deixaram de fazer o promotor, o juiz ou o advogado. O que interessa aqui são as regras do jornalismo e da língua portuguesa, além do que fizeram ou deixaram de fazer a repórter e os editores da publicação. Dessa forma, pelo texto acima, quando a repórter fez uso do travessão para quebrar o final da primeira frase, ela aplicou um estilo de redação que passa do gênero informativo para o interpretativo em um mesmo parágrafo. Ao empregar o “ou seja”, seguido de “uma espécie de”, parece que esta querendo resumir toda a oração da frase em uma única expressão: o tão repercutido “estupro culposo”.
Quando o texto foi complementado com a frase “o juiz aceitou a argumentação”, a jornalista abriu a arriscada brecha para uma possível confusão de compreensão por parte do leitor, mesmo que se referisse à primeira parte da frase anterior, não a sua síntese pós-travessão. O problema acabou sendo ainda mais acentuado, já que ela ainda fez uso das famosas aspas.
Muito usadas no jornalismo, o mais completo manual de redação da área, o do Estadão, destaca que as aspas “servem principalmente para indicar a reprodução literal de um período, oração, trecho de frase, palavra, lema ou slogan”. Já o bem elaborado Manual de Redação da Agência Senado diz que “as aspas serão usadas quando, em discurso indireto, o repórter reproduzir parte da fala ou quando citar trechos de documentos”. E complementa:
Colocar uma única palavra entre aspas não é bom recurso estilístico, pois torna o texto ambíguo. O termo pode assumir sentido pejorativo ou levar o leitor a crer que seu uso entre aspas signifique manifestação de ironia e que deveria ser entendido no sentido oposto ao conhecido. Se a intenção do repórter é indicar que aquela foi exatamente a expressão usada por alguém, deve reproduzir uma frase completa ou um trecho mais extenso da declaração. Aspas e travessões devem ser usados com cautela, para valorizar a informação.
E a professora Anabela Gradim, doutora em semiótica da comunicação, lembra que:
Também não se utilizam aspas para assinalar que determinada palavra é empregue não em sentido próprio mas figurado, nem para assinalar ironia. Quando o sentido que a palavra toma no texto não for claramente perceptível sem as aspas, então é porque essa opção não é a correcta e deve escolher-se outra palavra. Precisão e rigor são fundamentais na linguagem jornalística.
É possível ver que o uso de um suposto inofensivo sinal de pontuação, se mal empregado — para uma citação direta ou para uma ironia —, além de mal jornalismo, pode gerar desdobramentos incomensuráveis. Mas o que estava ruim, podia ainda piorar. O que agravou a situação não foram apenas as inclusões do travessão e das aspas pela repórter; o que atiçou a fogueira foi o uso incorreto e sensacionalista da expressão legalmente impossível na manchete: “Julgamento de influencer Mariana Ferrer termina com sentença inédita de ‘estupro culposo’ e advogado humilhando jovem”.
Ocorre que em nenhum momento do texto de mais de 11 mil caracteres publicado na madrugada de 3 de novembro, a repórter Schirlei Alves fez alusão de que na sentença o juiz tenha usado a expressão “estupro culposo”. Mesmo assim, não apenas a manchete induz o leitor a tal entendimento, mas o intertítulo da matéria caminha no mesmo sentido: “Como ‘estupro de vulnerável’ virou ‘estupro culposo’”.
Como é sabido, na rotina de produção jornalística, o responsável pela definição dos títulos, intertítulos, olhos, legendas e qualquer elemento extra-texto é o editor, que tem o aval do editor-chefe, que, por sua vez, é quem dá a palavra final na manchete do dia. E nessa madrugada específica, alguém apareceu com essa manchete absurda. Talvez por todos ainda estarem meio desnorteados com a recém-saída abrupta — e batendo — de sua principal estrela Glenn Greenwald, a volta do feriadão, as eleições nos Estados Unidos, enfim, toda a cadeia hierárquica falhou.
Mas a sucessão de procedimentos equivocados não havia acabado. Mesmo com toda a confusão que a manchete equivocada havia provocado ao longo do dia, às 21h45, ao final do texto, surgiu a seguinte nota de atualização:
A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artifício é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.
A última frase da nota parece tirada de algum release do Palácio do Planalto ou da Casa Branca. Como assim “em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo”?! Será que o que está escrito na manchete de que “Julgamento de influencer Mariana Ferrer termina com sentença inédita de ‘estupro culposo’…” quer dizer o quê? Qualquer pessoa do “público leigo” citado pela nota sabe que “sentença” é a parte final de um processo.
No entanto, o que mais impressiona nessa “nota de atualização” é o fato de dizer que inventar uma expressão é artifício usual ao jornalismo. Se os editores fizessem uma busca rápida em qualquer dicionário, mesmo online, encontrariam que o significado do substantivo artifício é, entre outras coisas: “sutileza a fim de enganar”, “estratagema”, “procedimento para disfarçar a natureza”, “maneira de enganar alguém”, “manha”, e assim vai.
Desculpem pela informação colegas, mas isso não é jornalismo. Ou não deveria ser. Isso é desinformação. Isso é construção desleal da realidade. Isso é exploração da ingenuidade do leitor. Isso é tudo que um jornalismo que se diz de qualidade e confiável não pode ser. Isso é mentira (sem aspas).
E para insistir no erro, tentando dar uma justificativa — algo típico do modelo adotado por grandes veículos de imprensa e alguns governantes —, no início da noite do dia 4 de novembro, às 18h19, foi publicada uma nova atualização. Dessa vez com a inclusão de cópias de duas páginas de parte das alegações do Ministério Público de Santa Catarina. No entanto, o que é possível ler do tradicional copia-e-cola dos textos jurídicos é exatamente a citação de um doutrinador do Direito dizendo que como não existe previsão legal para crime culposo no caso de estupro, se não há como provar que houve dolo, não há crime.
Este caso específico será ainda objeto de muitas discussões e estudos. Só que, da mesma forma que a tipificação de “estupro culposo” não existe no Código Penal, não existe também “bandido”, “quadrilha”, “menor com passagem”, “pivete”, “trombadinha”, “marginal” e vários outros termos usados e naturalizados cotidianamente pela imprensa para, assim como alega o The Intercept, “resumir o caso e explicá-lo para o público leigo” — ou seja, um “artifício usual ao jornalismo”. Só que nada disso rende trent topics.
***
Edgard Rebouças é jornalista, professor e coordenador do Observatório da Mídia na UFES.