O Itamaraty está omisso no caso do engenheiro brasileiro aprisionado pelo grupo iraquiano al-Mujahidin ou é a imprensa que se atrapalha ao relatar com as palavras corretas todos os detalhes do episódio?
As hesitações se completam e baseiam-se na maneira de classificar os perpetradores dos atentados contra civis no Iraque. Para entender esta cumplicidade é preciso examinar como os jornais reagiram aos dois atentados ocorridos em Bagdá na sexta-feira (21/1).
No primeiro deles, um carro-bomba explodiu diante de uma mesquita xiita em pleno feriado muçulmano ( Eil al Adha): 14 mortos e 40 feridos. No mesmo dia, uma ambulância-bomba explodiu numa festa de casamento (também xiita): 7 mortos e 16 feridos.
A Folha de S.Paulo (sábado, 22/1, primeira página) designou os assassinos como ‘insurgentes’. O Estado de S.Paulo (mesmo dia, pág. A 14), em subtítulo, abrandou o glossário habitual e classificou-os como ‘rebeldes’ (num entretítulo, de ‘insurgentes’). Já O Globo (mesmo dia, pág. 31, em subtítulo) não teve meias-palavras: preferiu enquadrar os responsáveis como ‘terroristas’.
Desinteresse e desatenção
Segundo o Aurélio, insurgente é o rebelde, revoltoso; insurreição é uma oposição violenta ou veemente. Portanto, um insurrecto não seria necessariamente criminoso; dependendo da causa, pode ser até uma figura benemérita que se levanta pacificamente para mudar a situação.
O mesmo Aurélio designa o terrorismo como ‘modo de coagir, ameaçar ou de impor a vontade pelo uso sistemático do terror, forma de ação política que combate o poder estabelecido mediante o emprego da violência’.
De posse dessas definições, como qualificar a dupla mortandade acima referida? O assassinato indiscriminado de civis não parece enquadrar-se nos paradigmas de uma insurreição porque as vítimas nada têm a ver com a situação que os autores do atentado querem modificar – uns foram rezar e outros foram festejar as bodas de correligionários.
Na verdade (e isto está em todos os jornais) os assassinos pertencem à minoria sunita que apoiava Saddam Hussein e pretendem intimidar os xiitas dispostos a participar e vencer as eleições do próximo domingo (30/1).
O nome desta intimidação é inequívoco: terrorismo.
E os jornalistas, por desinteresse, desatenção ou mais provavelmente para não serem confundidos com os neoconservadores da Casa Branca, preferem denominá-los como rebeldes ou insurgentes. Como as eleições são do interesse do governo americano (embora supervisionadas pela ONU), todos os atos de oposição ao satânico Bush ficam validados. Inclusive a morte de inocentes.
Correção abandonada
A confirmação do seqüestro do engenheiro brasileiro João José Vasconcellos Jr. pelo al-Mujahidin nos jornais no dia seguinte acionou uma fulminante reviravolta semântica.
A Folha consultou seus manuais e tratados internos e imediatamente passou a designar os seqüestradores como terroristas (sábado, 22/1, manchete de primeira página).
O Estadão entregou-se à perplexidade: na primeira página designa os bandidos como ‘seqüestradores’ e na página interna (A22) como ‘militantes’.
O Globo, arrependido dos critérios adotados na véspera, colou o rótulo de ‘extremistas’ àqueles que antes designara como terroristas.
Na segunda-feira (24/1), a Folha ficou ainda mais brava: abandonou a correção política e mandou bala em manchete: ‘Terror lança guerra à democracia no Iraque’ – sobre o ataque do ‘terrorista jordaniano’ al-Zarqawi ao ‘princípio da democracia e os que seguem esta ideologia errada’.
Parceria semântica
E onde entra o Itamaraty nesta história? Nossa diplomacia deixou de lado os punhos-de-renda e entrou no negócio dos panos-quentes. Se a imprensa e a opinião pública brasileira reagirem ostensivamente contra o terrorismo, nossos diplomatas podem se sentir constrangidos a adotar uma linha antiterror que periga parecer próxima da política adotada pelo governo Bush.
Negociar com ‘rebeldes’, ‘militantes’ ou ‘extremistas’ fica mais confortável. É politicamente mais correto, não afeta a imagem da política externa ‘independente’. Chamar terroristas de terroristas pode parecer lição encomendada pela professora Condoleeeza Rice.
Tudo bem, diplomatas têm razões e estratégias que escapam à lógica e à moral dos comuns mortais. O que confronta a lógica jornalística é a parceria entre grandes jornais e os interesses políticos de governos. Sobretudo em questões que podem comprometer a vida de um cidadão inocente.
Mesmo que estejamos diante de uma parceria semântica, jornais não podem abrir mão dos compromissos de buscar a verdade.
Dar nome aos bois é o principal deles.