Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Naturalização de interesses inconfessáveis

É cada vez mais frequente, e preocupante, a aceitação por jornalistas de interesses escusos de políticos ou partidos como se fossem legítimos, ‘naturais’. Veja-se o exemplo seguinte, tirado do noticiário de segunda-feira (20/12) do Estado de S.Paulo (sob o título ‘Padilha passa a ser solução para a Saúde’), que relata como o Ministério da Saúde de Dilma Rousseff estaria sendo destinado a Alexandre Padilha, do PT, para dele ser afastado Ciro Gomes, do PSB:




‘O PSB tem assegurados dois ministérios: o da Integração Nacional e o dos Portos, que será incrementado com a inclusão de atribuições hoje a cargo da Infraero, como a administração dos aeroportos brasileiros.


O ministério passou a ser atraente com as obras previstas nos aeroportos a partir do próximo ano para atender a compromissos decorrentes da Copa do Mundo, em 2014′.


Contratar obras de ampliação e reforma de aeroportos significaria, republicanamente, assumir a responsabilidade por garantir a qualidade dos trabalhos e o cumprimento dos prazos. Mas o que está implícito no texto é o valor das verbas que serão destinadas às obras. É a isso que remete, sem firulas, a palavra ‘atraente’.


Uma epidemia


Esse é apenas um minúsculo exemplo de uma verdadeira epidemia que contaminou o noticiário político há alguns anos, talvez devido à reiterada impunidade de autoridades acusadas de crimes como desvio de recursos, superfaturamento etc. Fala-se em interesses dessa natureza sem fazer qualquer reparo.


Sim, está subentendido que o leitor poderá tirar suas conclusões, mas em jornalismo, como diz Marcos Sá Corrêa, não existe nada implícito. Tudo deve ser explicitado. O discurso do jornalista é basicamente formal, não dá nada por previamente combinado entre o veículo e o leitor. Basta dizer que, levando isso ao paroxismo, jornais como a Folha de S.Paulo fazem questão de dizer no dia seguinte o que qualquer habitante do Brasil com 10 anos de idade ou mais já sabia na véspera (‘Dilma é a eleita’).


Não é o que Ciro disse


Como o Estadão poderia ter manifestado estranheza diante do que motivaria o interesse do PSB? Chamando a atenção, por exemplo, para o fato de que esse tipo de ‘apetite’ é antitético ao discurso público de um de seus quadros mais importantes, Ciro Gomes. Em abril, Ciro classificou o PMDB como ‘ajuntamento de assaltantes’ e disse que o presidente do partido, Michel Temer, é o ‘chefe da turma de pouco escrúpulo’.


O jornal poderia ter combinado a informação (suposição?) sobre o que é ‘atraente’ no novo ministério com a lembrança da acusação feita por Ciro. Estaria assim, elegantemente, evitando passar atestado de legitimidade a um comportamento predatório do dinheiro público e solapador da moralidade administrativa.


A mídia endossa esse tipo de cálculo como rotina da discussão sobre cargos e depois faz editoriais pedindo moralização e combate à corrupção. Não percebe que está (des)educando seu público para uma aceitação passiva da malandragem engravatada.