Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Náufragos de um mesmo barco

Para quem não acredita que a História tenha retrocessos, como um caprichoso de rio de planície, as eleições de domingo (1/10) não deveriam deixar dúvidas.


Comparado ao que foi o entusiasmo pelas eleições diretas de 1984 – devidamente frustradas pela lógica perversa e sem espaço para a cidadania – e mesmo as eleições de 2002 que elegeram o atual presidente da República, a votação deste fim de semana foi monótona como a morte anunciada, na seqüência de debates vazios, denúncias infindáveis e argumentos que deveriam nos levar a pensar em que mundo estamos vivendo.


Uma discussão possível sobre candidatos/partidos capazes de oferecer as melhores alternativas há muito tempo morreu nas páginas dos jornais que deram sua contribuição para o descrédito, desânimo e falta de perspectiva.


Os jornais não fizeram outra coisa, nos últimos meses, senão desfilar a seqüência de escândalos como se as comportas da imoralidade tivessem sido abertas definitivamente. Com isto cultivamos uma visão maniqueísta da realidade, e especialmente as gerações mais jovens deixam de dar conta da lógica perversa por trás de uma sociedade nacional com inequívocos traços senhoriais, despótica, injusta e corrupta.


Numa sociedade com estas características, como num jogo de espelho, mesmo a oposição cultivada está marcada pelos mesmos vícios – o que significa dizer que situação/oposição são exatamente a mesma coisa. O que os diferencia é exclusivamente a oportunidade de fazer valer a força da memória, em detrimento da inteligência.


Juízo crítico


Discussão incapaz de sensibilizar mais que meia dúzia de gatos pingados, a que está sendo posta por este escrito.


Os vitoriosos – ao menos os que se julgam vitoriosos – deverão tripudiar sobre considerações deste tipo com base no entendimento rápido da lógica fácil, palavras de ordem e sarcasmos que, no fundo, ocultam o desconforto de quem se recusa a pensar.


A imprensa tratou a possibilidade de voto nulo – iniciativa profundamente ética ao menos no contexto em que estamos vivendo – como um crime de lesa-pátria, uma irresponsabilidade de quem não se compromete, de levianos desapegados das obrigações mínimas do dia-a-dia. Com isso tornou coletiva uma ignorância que lhe é própria, caracterizada pela filosofia prática das redações, com período de vida equivalente ao das moscas de frutas.


A verdade, no entanto, é que esta condenação indevida revela fragilidades intelectuais que já deveriam ter sido superadas pelo exercício de pouco mais de duas décadas do afastamento da república dos generais.


Assim, essa preguiça mental fez eco fácil a falas antigas de quase 500 anos de beletristas de gosto duvidoso, memória do que existe de mais antigo e nefasto na vida política brasileira, entulho das usinas de açúcar do Brasil colonial que mandavam seus filhos a Coimbra para cultivar o que parecia de bom tom num vazio de idéias e perspectivas de futuro.


Não foi à toa que o Brasil foi desbancado pelas Antilhas como principal fornecedor de açúcar num momento em que detínhamos o monopólio mundial. Bastou meia dúzia de inovações e já havíamos perdido o doce posto de donos do açúcar do planeta.


Com descompassos como este chegamos ao século 21 repetindo como papagaios tristemente alienados frases de efeito discutível como a cidadania do voto. Se o voto entre nós tivesse de fato a sustentação cidadã que se lhe pretende dar, não haveria uma única razão para ser obrigatório.


Se é obrigatório, então não é cidadão. Isso não significa que as pessoas não tenham o direito de votar. Mas não poderiam, em nome de um futuro incerto e nada promissor, votar sem pensar no que estão fazendo. E aqui entra a contribuição nefasta da imprensa desinformada, imediatista, que mais prejudica que ajuda na formação de um juízo crítico sobre como poderia se dar uma civilização nos trópicos, nas latitudes/longitudes em que nos encontramos.


Momento de lucidez


Quem desejar um exemplo clássico sobre o que estamos falando que retome autores tão surpreendentemente atuais como José Bonifácio de Andrada e Silva e Joaquim Nabuco.


Consideremos os quatro candidatos majoritários que compareceram ou deveriam ter comparecido ao debate organizado pela Rede Globo de Televisão, uma espécie de auditório nacional em que o Brasil se recolhe para se informar e tomar decisões.


O candidato e atual presidente, certamente em função de táticas palacianas, simplesmente não compareceu. Entendeu, seguramente, que sairia de lá desgastado e em nome do cinismo mais deslavado optou pela ausência. Pode ter até contribuído para que o nível das considerações não tenha baixado ainda mais, se é que isto poderia ser possível.


Dos que compareceram o que se ouviu é a demonstração mais convincente do vazio intelectual, político e de rumos de que o país se ressente talvez como efeito retardado das restrições de mais de um quarto de século de governos militares.


Inacreditável que a candidata do PSOL, a senadora Heloisa Helena, tenha coragem de dizer as tolices que disse, especialmente envolvendo as perspectivas da ciência e tecnologia entre nós. Ela simplesmente chutou – e chutou com os dois pés, às vezes ajudando com as mãos – um conjunto de incongruências que não faz o mínimo sentido de um ponto de vista lógico e real.


Mas quem é que sabe disso? Meia dúzia de gatos pingados, comparativamente falando.


Se 10% do potencial de produção de ciência que a senadora atribuiu à Amazônia fossem reais deveríamos nos convencer de que vivemos num outro país e que não nos avisaram de tamanha transformação.


Já o candidato do PSDB, o tempo inteiro repetindo o bordão de que é sério, seus companheiros são sérios e seu partido é sério, talvez estivesse o tempo inteiro simplesmente denegando, em linguagem psicanalítica. Até porque, quem é sério demonstra que é e não fica se repetindo neuroticamente.


Alckmim não tem o mínimo pudor em se referir ao número de presídios que construiu e os que estão em construção prometendo, em linhas gerais, encarceramento para um número cada vez maior de pessoas como se não houvesse uma aberração por trás deste raciocínio.


Alguém poderia pensar num único momento de lucidez: ‘Mas por que tantos presídios?’


Um netuniano, digamos, que passasse por aqui investigando sobre o comportamento de nossa civilização certamente anotaria um dado deste tipo como altamente significativo: ‘Preocupação sistemática em encarcerar pessoas, sem a menor preocupação com condições que levem um número crescente de pessoas a se meterem com o crime, vendendo drogas, roubando ou matando por falta de trabalho’ (há muito tempo, não apenas nos últimos anos).


Lógica do capitão


E o netuniano pensaria com seus botões: ‘Mas afinal, com uma estratégia dessas, onde é que vão chegar?’ E seus conterrâneos distantes, de posse de informações desse tipo certamente fariam considerações semelhantes.


Onde nos classificariam, no conjunto de sociedades galácticas eventualmente já contatado? No último deles, talvez. Daqueles que se recusam a pensar e agem em função dos estímulos mais fortes e elementares.


Ah! sim. Aí temos o ex-ministro da Educação, Cristóvam Buarque, fazendo o papel de moço bom. Na verdade sem nenhuma perspectiva de sucesso e apenas pavimentando o caminho para o futuro próximo, exatamente com sua colega, a estridente senadora Heloisa Helena.


Não importa quem será o vencedor. Não fará a mínima diferença. Seria motivo de comemoração se ao menos não tivéssemos um segundo turno. Economizaríamos algum recurso público e não teríamos pela frente uma seqüência de quase obscenidades com pretendentes a um emprego pago pela dinheiro público vendendo as promessas mais deslavadas, como se fôssemos 126 milhões (de eleitores) de idiotas.


No rescaldo dessa demonstração de falta generalizada de perspectivas, segue, a contragosto, uma previsão nada animadora: vencedores e perdedores, estamos, lamentavelmente, todos no mesmo barco. Ele está fazendo água e os botes e coletes salva-vidas não são em número suficiente.


Pela lógica do capitão, seja quem for o escolhido, quando o barco naufragar de vez não se diga que ninguém os avisou sobre o risco de navegação tão insensata.

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Jornalista