Vantagem do retrovisor é a visão dupla: olha-se à frente, mas o que interessa já aconteceu – ou está acontecendo – atrás.
As tradicionais revisões e retrospectivas de dezembro estão reclamando uma reinvenção, para usar a palavra da moda. Cansaram. Caso da coleção de fotografias apresentadas por Veja (edição 2041, de 29/12/2007), algumas impressionantes pela barbaridade, outras apenas bonitas, outras singulares. O conjunto resulta banal, não produz resíduos, não aciona a curiosidade, a não ser a de saber o que virá nas páginas seguintes. Folheada a última página, o esquecimento.
O balanço de 2007 da Folha de S.Paulo é extraordinário: conseguiu a façanha de reviver o gênero ‘melhores do ano’ (enterrado há algumas décadas), num caderno de classificados – o de veículos. O jornal a serviço do Brasil prestou mais um servicinho ao país ao reconhecer que não temos melhores, nem piores, a não ser entre os 50 carrões testados pelo jornal.
Para agarrar leitores e leitoras saturados pelos factóides políticos apresentaram 15 perguntas sobre os fatos do ano. Na chamada da primeira página, a musa dos escândalos, com os indefectíveis seios à mostra e irreversivelmente caídos: a ex-gestante Monica Veloso.
A revisão anual do Estado de S.Paulo (publicada, aliás, num caderno à parte, o ‘Aliás’) tem ilustres articulistas e serve para exibir a mais recente revolução jornalística destas plagas – o colaboradorismo. Como custa caro contratar profissionais de imprensa experientes, a saída é pagar um miserável pró-labore a um acadêmico. Das quinze avaliações sobre 2007 apenas três são assinadas por jornalistas. O sonho do jornal sem jornalistas está prestes a concretizar-se.
Também ficaram fora de moda as prospecções e previsões. Ainda que os leitores das classes C-D-E adorem bolas de cristal e horóscopos, e a elite AAA fascine-se com tendências, o exercício do jornalismo nada tem a ver com vaticínios e adivinhações.
Desde as primeiras gazzetti do século 16 até os portais da web no século 21, o leitor quer apenas entender o que está acontecendo. Nada mais do que isso. Nostradamus, decididamente, não é o nosso santo padroeiro.
Erro gráfico
The Economist, melhor semanário do mundo, há alguns anos oferece aos assinantes um brinde de fim do ano: a antevisão do que acontecerá nos próximos 365 dias (‘The World in…‘). No texto de abertura das previsões para 2008 (pág. 13), o editor Daniel Franklin reconhece que a futurologia não tem futuro e tenta uma explicação acadêmica: as megatendências estão sendo substituídas pelas microtendências.
Em outras palavras: qualquer fiapo de perspectiva, interpretação, categorização ou estereotipia pode ser considerado confiável. Vale tudo: em breve, teremos as nanotendências orquestradas por meia dúzia de indivíduos com boas conexões na mídia que ditarão as modas, gostos, preferências e ostracismos.
Daniel Franklin não poderia admitir o pecado original deste tipo de jornalismo divinatório: a preparação de uma prospecção deste porte leva no mínimo 90 dias (da concepção à entrega na casa do assinante), significa que o redator obriga-se a pressentir em meados do ano anterior as informações que seus leitores vão digerir ao longo do ano seguinte. Puro malabarismo.
Isto sem falar nos imprevisíveis erros gráficos: em letras microscópicas, no sumário (pág. 9), The Economist desculpa-se porque em parte de sua tiragem a população dos EUA foi prevista em 104,8 milhões de habitantes, quando se sabe que será de 304,8 milhões.
Chá das cinco
Consciente da precariedade e volatilidade deste tipo de texto, os editores acrescentaram uma espécie de placar (pág. 74) de erros e acertos da previsão anterior. Foram felizes no front europeu (Nicolas Sarkozy, Gordon Brown etc.) e apresentaram mea-culpa em apenas três tópicos:
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Em meados de 2006 a palavra subprime não existia vocabulário da revista. No entanto, a crise do mercado imobiliário americano tem potencial para tirar o sono dos mais sólidos bancos por mais alguns semestres.**
Os monges do Myanmar também não foram cogitados nas previsões para 2007, mas o pacifismo lavrou mais um tento – outra ditadura tremeu nas bases, incapaz de vencer multidões entoando cânticos e preces.**
No front doméstico a banda da Economist reconheceu que foi incapaz de prever as enchentes na Inglaterra e a presença de Margaret Tatcher em Downing Street, número 10, para tomar chá com o primeiro-ministro trabalhista. Peanuts, como diria o poliglota Aldo Rebelo.Nuvens negras
The Economist errou feio ao ignorar os talentos de Hugo Chávez: neste fim de 2007 (quando o material estaria em preparação), o caudilho venezuelano estava nas manchetes levando uma reprimenda do rei de Espanha, sofrendo um tremendo revés no plebiscito para a reforma da Constituição e comandando o maior show jamais montado para festejar a devolução de reféns seqüestrados por terroristas.
Os redatores do melhor semanário do mundo, teoricamente experts em questões relativas ao antigo Império Britânico, não perceberam as nuvens negras sobre o subcontinente indiano tanto nos seus presságios para 2007 (escritos em 2006) como num eventual pedido de desculpas com vistas a 2008. O assassinato de Benazir Bhutto neste finzinho do ano coloca o Paquistão como o mais letal barril de pólvora do mundo. Sorry.
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No retrovisor deste Observador apareceram ultimamente as seguintes questões:
1.
Mortes nas estradas são federais?Desde o dia 25/12 fala-se que este foi o Natal mais violento em 20 anos. E o estado de Minas Gerais aparece como campeão de mortes e acidentes.
Como o cômputo foi realizado em estradas federais, os jornais apresentam um farto material estatístico, mas não conseguem identificar a(s) autoridade(s) capaz(es) de oferecer explicações e assumir responsabilidades.
A imprensa identifica uma calamidade e fica por isso mesmo, estamos conversados. O governador mineiro Aécio Neves evaporou-se e não apareceu alguém para falar em seu nome. Os ministros dos Transportes ou de Cidades, que teriam algo a dizer, sentem-se desobrigados de manifestar-se, explicar-se, denunciar ou defender-se – afinal, as tragédias ocorreram em território mineiro.
Porém, o estado de Minas Gerais também é campeão em acidentes em estradas estaduais (O Globo, 28/12, pág. 3). Acontece que nossos jornalões ditos nacionais não dispõem de sucursais nem correspondentes estaduais ou mesmo regionais para dar seqüência aos tétricos números.
A estatística fica solta, inútil. Em Minas, vilão é quem morre.
2.
A cabeça do leitor é segmentada?As primeiras páginas dos jornalões transformaram-se em conjuntos de autarquias administrados pelos departamentos de marketing. Condomínio de chamadas obrigatórias para cadernos, seções ou colunistas, emaranhado burocrático que engessa a seleção e hierarquização das notícias.
A Folha de S.Paulo, sempre mais xiita, transformou suas capas, principalmente nos fins de semana, num conjunto de lotes intensamente poluído por cores e apelos irrelevantes, onde o editor mal consegue exercer os seus atributos e deveres para oferecer ao leitor aquilo que ele, como jornalista, considera fundamental.
Esta colcha de retalhos & segmentos explodiu (ou auto-explodiu-se) na edição de quarta-feira (26/12), quando o jornal não conseguiu destacar dois grandes assuntos: o recorde de mortes nas estradas durante o Natal e o princípio de incêndio no Hospital das Clínicas [ver ‘As tendências do jornalismo de verão‘].
Na preparação da edição de sexta-feira (28), sobre a morte de Benazir Bhutto, alguém deve ter dado um murro na mesa e as autarquias da primeira página foram pelos ares. Sumiram.
O leitor (ou leitora, dá no mesmo) compra ou lê um jornal movido pela vontade cósmica de saber o que acontece, independente do assunto. É um impulso cultural, existencial, orgânico e universal, oposto às gôndolas dos supermercados.
Na última sexta-feira do ano (28/12), a Folha voltou a ser um jornal comandado pelo instinto jornalístico. No último sábado de 2007 recuou, mesmo assim conseguiu-se um equilíbrio entre jornalismo e segmentofilia. No derradeiro domingão de 2007, a certeza de que nada mudará em 2008: nossos jornais imolaram-se no picadinho. [Segue.]