As gazetas, rádios e emissoras de TV da França e de Navarra relataram e expuseram, desde a noite de 14 de agosto de 2021, imagens e testemunhos sobre o terremoto que abalou violentamente o sudoeste do Haiti. Tema, em nenhum destes relatos, tratado em manchete, com prioridade, mas sempre com emoção. Uma emoção às vezes acompanhada de comentários fatalistas e piedosos. Se olharmos de perto, não há muito para além de sangue e de lágrimas. Nenhum ou pouquíssimos debates e questionamentos. Tudo se passa como se tudo isso não levantasse questões, dez anos após tragédia semelhante que devastou a capital, Porto Príncipe, em 12 de janeiro de 2010, matando mais de 200 mil pessoas.
Esse caso seria o indício de que o funcionamento das mídias vive uma crise? A prioridade é dada à informação espetacular do momento: EUA e Afeganistão. E é verdade que o desastre militar, diplomático e político dos Estados Unidos no Afeganistão é, desse ponto de vista, central. Afinal de contas, os Estados Unidos são ainda uma potência imponente, mas também porque suas televisões e redes sociais particularmente mobilizadas neste outro foco de notícias oferecem imagens marcantes que relegam todos os outros temas da atualidade para o segundo ou terceiro lugar. “O movimento de solidariedade”, escreveu o geógrafo haitiano Jean-Marie Théodat [1], em La Croix, foi “arrefecido” pela relativa proximidade do desastre de 2010. Talvez.
É verdade que as 2 mil vítimas identificadas até 18 de agosto de 2021 são uma figura pálida na lista de “manchetes”, provedoras de escuta e de fundos de solidariedade, em comparação com as 200 mil de 12 de janeiro de 2010. É verdade também que, ao contrário dos terríveis acontecimentos de 2010, a França oficial não se pronunciou muito. Os haitianos que residem na França, preocupados, mobilizaram sua estação local de rádio e televisão Fanfan Mizik, juntamente com seus compatriotas na Alemanha, Bélgica, Benin, Canadá e Espanha e transmitiram um apelo para quebrar o silêncio em torno de sua catástrofe: “Abaixo o silêncio sobre o Haiti”.
Apesar do contexto Afegão, se as autoridades francesas mantiveram o silêncio, outras reagiram. Algumas têm até sido rápidas em fornecer ajuda de emergência. O Papa Francisco e os católicos, da América Latina e de outras partes do mundo, “ofereceram suas palavras de encorajamento aos sobreviventes na esperança de que a comunidade internacional demonstrasse um interesse comum” [2]. A ONU e a UNICEF noticiaram em 16 de agosto que as equipes estavam no local para realizarem uma avaliação das necessidades.
A América Latina, da Argentina, passando pelo Chile, México, Peru e República Dominicana até Cuba e Panamá, mostrou imediatamente uma forte solidariedade verbal e material. Assim como declarou o presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, trata-se de um gesto de “solidariedade para um povo fraterno […] que vive um momento de emergência”. O Canadá também sinalizou sua solidariedade hemisférica e francófona. A Espanha fez o mesmo. Tal como Joe Biden que, apesar dos seus contratempos no Afeganistão, anunciou em 15 de agosto a nomeação de um coordenador que deve chegar ao Haiti e se encarregar de tomar providências em socorro efetivo a partir de 18 de agosto.
É verdade que a relutância da França — para além de evidenciar uma maior abstenção em relação a questões governamentais internacionais e do pouco interesse histórico pela antiga colônia — pode ser lida como uma admissão de impotência. Após seu heroico gesto de independência realizado em 1803, quando as tropas de Bonaparte foram expulsas, os haitianos de fato falharam nas etapas seguintes. De 1804 até os dias atuais, o Haiti, seus líderes, suas várias elites, seus grupos sociais e religiosos não conseguiram criar um denominador comum para a cidadania e o desenvolvimento.
As catástrofes naturais só vieram agravar um desastre preexistente. Dada essa espécie de renúncia de responsabilidade dos haitianos, vários atores estrangeiros intervieram nos assuntos internos do país, afastando-os de sua soberania local, atrasando ou mesmo impedindo a construção de um Estado digno deste nome. Num esforço para impedir a migração em massa, para satisfazer expectativas eleitorais, morais, religiosas ou financeiras, os Estados Unidos, a França e milhares de ONGs obliteraram a vontade coletiva dos haitianos.
Deste ponto de vista, a experiência dos últimos dez anos, relativa à gestão das consequências do terremoto de 2010, foi a de um fracasso amargo. A “comunidade internacional” e as ONGs tomaram o lugar das autoridades locais, e isso com o resultado que conhecemos: retorno do cólera, desordem administrativa, desvio dos recursos de ajuda aos habitantes por parte de atores locais, mas também pelas ONGs, escândalos sexuais etc. O grupo de Estudo, Pesquisa e Formação Internacional da Escola Nacional de Administração Pública do Quebec produziu, de forma muito bem elaborada, uma avaliação contundente da situação [3] dos desdobramentos em relação ao terremoto de 2010. O que acontecerá em relação a esta? A ver…
Texto publicado originalmente em francês, em 20 de agosto de 2021, na seção ‘Actualités – Haïti’, no site Nouveaux Espaces Latinos, Paris/França, com o título original “Haïti en tremblement de terre: ultime station d’un interminable chemin de croix?”. Tradução de Thaís Pereira da Silva. Revisão de Luzmara Curcino e Débora Cristina Ferreira Garcia.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.
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Notas
[1] Conferir no jornal La Croix, de 17 de agosto de 2021, p. 5.
[2] Conferir no site oficial de notícias do Vaticano, Vatican News. Disponível em https://www.vaticannews.va/fr/pape/news/2021.
[3] Louis-Charles Gagnon-Tessier, La gestion de crise : analyse du cas du tremblement de terre de 2010 en Haïti [A gestão da crise : análise do caso do terremoto de 2010 no Haiti], Québec/Québec, ENAP, 2017.