Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

No que precisa dar o mea-culpa do New York Times

Tardia, superficial, insuficiente, o que se queira, a autocrítica do New York Times em relação a sua cobertura ‘não tão rigorosa como deveria ter sido’ das alegações do governo Bush para invadir o Iraque é, ainda assim, um extraordinário fato jornalístico – e não só por ir no contrafluxo da histórica tradição da imprensa de errar aos berros e se retratar aos sussurros, e olhe lá.

Em 11 de maio do ano passado, começando na primeira página e se derramando edição adentro, o NYT publicou um oceânico auto da devassa das fraudes continuadas do seu repórter Jayson Blair. Perto desse transbordamento de autoflagelação, em 7.400 palavras, as 1.100 palavras da nota dos editores de 26 de maio, burocraticamente intitulada ‘The Times and Iraq’, numa plebéia página par do primeiro caderno, podem parecer apenas uma ‘mini culpa’, como escreveu na revista eletrônica Slate o crítico Jack Shafer, que faz tempo vinha latindo nos calcanhares do jornalão por causa disso.

Podem parecer, mas podem também dar em muito mais. A questão essencial não é tanto se o NYT foi fundo o bastante no seu ato de contrição ou se devia ter golpeado o peito com mais força, ao som de um audível mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa.

[Mas é impossível deixar de contrastar a sobriedade talvez excessiva da nota com o contundente artigo ‘Armas de destruição em massa? Ou de distração em massa?’, do editor público do NYT, Daniel Okrent, no último domingo. A propósito, o jogo de palavras do título vai direto ao ponto em inglês, em que ‘distraction’ significa antes ‘diversionismo’ do que ‘falta de atenção’ ou ‘divertimento’. Veja nesta rubrica um resumo do artigo de Okrent.]

À luz do sol

Motivos para o jornal penitenciar-se até que não faltariam. Nos 18 meses que precederam a invasão, o NYT publicou pelo menos uma dezena de fortes matérias exclusivas, de primeira página e repercussão mundial, que ecoavam as alegações da Casa Branca para justificar o despropósito de que o Iraque representava um ‘perigo real e presente’ para os Estados Unidos e os seus aliados.

Como se sabe, pretextou-se que o regime de Saddam tinha parte com a al-Qaeda de Osama bin Laden e, mais importante, que dispunha de arsenais químicos e biológicos, tratava de fabricar a bomba atômica e tomaria a iniciativa de usar qualquer dessas armas.

O NYT não foi a única publicação americana de primeira linha a vender ao público, como se fosse autêntica, mercadoria falsa adquirida de fornecedores desonestos – os estelionatários políticos do governo Bush e os escroques a quem eles protegiam entre os exilados iraquianos.

Mas vai sem dizer que uma coisa era a Fox News Television papaguear as mentiras do bushismo e dos neocons que o adestraram para a guerra, outra era o jornal mais influente do mundo – lido por todos os chefes de governo que contam – cobri-las de respeitabilidade. E poucas publicações, como esta, passaram adiante o peixe podre com tanta convicção, sem examinar direito o estado de suas guelras, nem desconfiar do odor que dele emanava.

Nas palavras do NYT:

‘Em alguns casos, informações então controvertidas e que agora parecem questionáveis foram insuficientemente relativizadas ou contestadas. Em retrospecto, gostaríamos de ter sido mais agressivos ou reexaminar as alegações à medida que novas evidências emergiam – ou deixavam de emergir.’

Nas palavras de Okrent: ‘O fracasso não foi individual, mas institucional’. Ou seja, ‘um sistema disfuncional permitiu a alguns repórteres em Washington e Bagdá trabalhar fora dos costumeiros padrões de controle das sucursais’.

Isto posto, antes de contestar ou reexaminar as alegações do NYT sobre os porquês dessa tremenda falta de relativização e agressividade, talvez seja o caso de ficar de olho em duas frentes.

Trata-se de saber, no âmbito do jornal, como se traduzirão nas suas páginas de agora em diante o enunciado e a promessa que fecham o texto dos não identificados editores: ‘Consideramos que a história das armas do Iraque e do padrão de desinformação [a respeito] não é assunto encerrado. E temos toda a intenção de continuar a publicar relatos agressivos para deixar as coisas claras’.

Para deixar as coisas claras, o NYT terá que instaurar o mais ambicioso e implacável inquérito jornalístico sobre a construção e a propagação da Grande Mentira que tornou possível arrasar um país, matar, mutilar ou torturar mais de 10 mil de seus habitantes civis – e fortalecer, como temiam os críticos, o terrorismo islâmico.

Não será um único materião que dará conta do recado. Mas quantas tiverem de ser as reportagens capazes de repor a verdade dos fatos, como se diz, cada dia que passar sem que elas comecem a aparecer será um dia a acrescentar ao já vasto débito acumulado – e enfim assumido – pelo NYT.

[Essas palavras já estavam na tela quando este leitor topou com a seguinte passagem do texto do editor público Daniel Okrent: ‘…uma série de matérias agressivamente relatadas, detalhando a má informação, desinformação e análise suspeita que levou virtualmente o mundo inteiro a acreditar que Hussein tinha armas de destruição em massa à sua disposição’.]

Trata-se de saber também, dessa vez no âmbito da mídia americana, se a confissão do seu mais conceituado representante ajudará a expor ao sol e a desmanchar a cumplicidade da indústria da informação dos Estados Unidos com o bushismo em geral e Bush, em especial.

Maus antecedentes

Uma pesquisa com 547 jornalistas americanos, divulgada na semana passada, revelou que mais da metade dos entrevistados acha que a mídia não tem sido suficientemente dura com Bush.

Diferentemente do que se costuma dizer, a cumplicidade não surgiu das cinzas do 11 de Setembro. A tragédia das torres apenas levou a extremos um padrão já instalado de cobertura política facciosa e de jornalismo ‘corajosamente a favor’ do mais nefasto sistema de interesses instalado no poder desde a era Nixon.

Com as exceções de sempre, jornais e revistas – para não falar de TV e rádio – cobriram com um olho fechado e outro míope a fraude eleitoral na Flórida a partir da qual a direita deu o golpe judicial que despejou Bush na Casa Branca.

A história (ou boa parte dela) do envolvimento da imprensa com essa operação está contada no livro What liberal media?, do jornalista Eric Alterman (Basic Books, 2003, 322 pp., US$ 25).

Mas o estrépito da derrota moral e política dos Estados Unidos no Iraque começa a produzir efeitos. Escrevendo sexta-feira passada no mesmo NYT, o colunista Paul Krugman – o consagrado guru econômico que se transformou num dos mais afiados críticos de mídia dos Estados Unidos – diz que ‘coisas espantosas têm acontecido nos últimos tempos’.

‘Muitos jornalistas’, observa, ‘parecem lamentar o contexto mais amplo em que se incrustou a cobertura do Iraque: o clima em que a imprensa não se dispunha a transmitir informações negativas sobre George Bush’. Ele foi ‘um personagem de ficção que a imprensa, por várias razões, apresentou como realidade’.

Esse clima e essas razões decerto têm a ver com os erros que o NYT agora reconhece, com a demora desse reconhecimento e com o simplismo da explicação oferecida para eles. Assim como não dá para ler a nota do jornal sem suspeitar que os seus autores se sentaram para escrevê-la sob o sopro dos novos ventos.

O NYT diz que muitos dos ‘artigos problemáticos compartilham de uma característica comum. Dependeram pelo menos em parte das informações de um círculo de fontes iraquianas, fugitivos e exilados voltados para uma ‘mudança de regime’ no Iraque’.

Ora, faz favor. Os repórteres que os procuravam (ou eram por eles procurados), os seus superiores e daí até a cúpula do jornal sabiam desde sempre qual era a desses senhores – destronar Saddam e, no caso do mais notório deles, o agora caído em desgraça Ahmad Chalabi, tomar o seu lugar. Fontes no mínimo suspeitas, portanto.

Sabiam – ou, se não soubessem, não mereciam ter a carteirinha do NYT – que Chalabi, fonte do jornal desde pelo menos 1991, era o protegido do neocon Paul Wolfowitz, o sub de Donald Rumsfeld no Pentágono, e do consegliere Richard Perle, codinome ‘Senhor das Trevas’.

Sabiam que, a par de suas ambições políticas e de sua parceria com os mais entusiasmados ideólogos do novo poder imperial americano, Chalabi tinha fama de, ou era, batedor de carteira. Em 1989, um tribunal jordaniano o condenou a 22 anos por milionária fraude no Petra Bank, de Amã. Quando a sentença saiu, ele já tinha se escafedido do país – no porta-malas de um carro.

Aliás, se dependesse de seus antecedentes, ele não arranjaria emprego nem numa revenda de carros usados, escreveu sábado no Guardian de Londres o americano James Moore, autor de Bush’s war for re-election: Iraq, the White House and the people, no artigo ‘Como Chalabi e a Casa Branca capturaram a primeira página’.

[Emprego quem arranjou foi uma sobrinha de Chalabi, informa Okrent. De janeiro a maio do ano passado ela trabalhou na sucursal do NYT no Kuwait.]

Título impiedoso

Os jornalistas envolvidos deviam saber também, a menos que a especialidade de todos eles fosse corrida de galgos ou outra exótica ocupação humana, que em 1996 Wolfowitz, o chapa de Chalabi, foi um dos autores de um estudo encomendado pelo direitista israelense Benyamin Netaniahu e publicado em Jerusalém, que defendia a ‘remoção’ de Saddam para redefinir o ‘ambiente estratégico’ de Israel e ‘arquivar as ambições regionais da Síria’.

Chalabi e companhia bela, que ao longo dos anos 1990 tomaram uns 100 milhões de dólares da CIA para o seu partido, o Congresso Nacional Iraquiano, passavam para a mesma CIA e demais serviços de inteligência de Washington as lorotas de que os profissionais desconfiavam, mas que os seus superiores queriam ouvir sobre a ‘ameaça iraquiana’ – e aí começava a cadeia da felicidade.

Quando o reportariado passou a ir atrás da história das imaginárias ligações de Bagdá com bin Laden e, principalmente, da história das armas de destruição em massa de Saddam – a partir de outubro de 2001 –, as fontes oficiais os encaminhavam para Chalabi, que tinha apresentado o seu pessoal a pelo menos oito agências ocidentais de espionagem, segundo fontes americanas.

Chalabi fazia as denúncias e sugeria que os entrevistadores procurassem outros iraquianos, por exemplo, cientistas refugiados no exterior – os quais disporiam de informações em primeira mão dos programas militares proibidos ou deles teriam participado.

Publicadas – pelo NYT, não por algum Chattanooga Daily – as matérias serviam à turma da pesada do bushismo como ‘prova’ junto aos céticos do Departamento de Estado, da CIA, do Congresso e dos think-tanks de Washington de que a intervenção armada era inescapável.

As matérias, depois ‘confirmadas’ pela turma, alimentavam outras matérias, os talks-shows de rádio e TV, e o vasto contingente de pundits (comentaristas de mídia) conservadores, nos EUA e na Grã-Bretanha. Uma operação para ninguém pôr defeito.

Diversos jornalistas experientes embarcaram nessa – por gosto ou necessidade. Quem se recusava, corria o risco de ir para a lista negra. Foi o caso do repórter Dana Milbank, credenciado do Washington Post na Casa Branca. Puseram-no na geladeira (ninguém respondia aos seus telefonemas) e chegaram a sugerir ao seu editor que ele se daria melhor em outra freguesia.

Ele conta que, em julho de 2002, pela primeira vez desde o 11/9, o corpo de jornalistas acreditado na presidência ‘mostrou os dentes’. Logo, porém, ‘o governo fez soar os tambores de guerra e a maioria dos jornalistas recaiu na docilidade’, nas palavras de Paul Krugman.

Do mesmo Krugman sobre o papel da intimidação:

‘Depois do 11/9, se você pretendia dizer algo negativo sobre o presidente, era bom estar preparado para a avalanche de e-mails odiosos. Pundits de direita e publicações fariam tudo para arruinar a sua reputação e você teria de se preocupar com ter o acesso negado ao tipo de informação ‘de dentro’, que é a base de muitas carreiras jornalísticas.’

Não era tampouco um estímulo para um repórter ir atrás do pessoal do contra que pudesse haver no governo. Deu no seguinte:

‘No período anterior a guerra, os jornalistas americanos dependiam demais de fontes simpáticas ao governo. Aqueles com opiniões dissidentes – e eles eram mais do que uns poucos – eram postos de lado. Em conseqüência, a cobertura era altamente alinhada com a Casa Branca. Isso era especialmente aparente no caso das armas de destruição em massa do Iraque – o núcleo do argumento do presidente para a guerra. Apesar das evidências abundantes de que o governo manipulava descaradamente as informações da inteligência a esse respeito, a imprensa repetidamente deixou que autoridades saíssem dessa numa boa.’

A nota do NYT teria outra estatura se contivesse essas palavras, ou o equivalente. Elas constam do que deve ser a melhor reportagem sobre a catástrofe jornalística que foi a cobertura do pré-guerra iraquiano (para não falar na guerra em si). Tem 7 mil palavras e saiu na edição de 26 de fevereiro deste ano do New York Review of Books. Seu autor, especialista em mídia e relações internacionais, é Michael Massing, editor contribuinte da Columbia Journalism Review. O título é impiedoso: ‘Now they tell us’ (Agora eles nos contam).

O que Massing não conta sobre o papelão da imprensa não vale a pena saber. E o que ele conta é devastador.

‘Sepultada profundamente’

Para ficar no NYT, quem mais contribuiu para difundir a patranha das WMD (sigla em inglês para ‘armas de destruição em massa’) foi a repórter Judith Miller. Dela Massing se ocupa longamente, assim como Jack Shafer, citado no início deste texto, em sucessivos artigos no site Slate, em especial, a 25 de julho de 2003, ‘The Times scoops that melted’ (Os furos do Times que derreteram; scoop em inglês corrente quer dizer, entre outras coisas, furo jornalístico e bola de sorvete).

De seu lado, para demonstrar como era fácil manipular a repórter e o seu jornal, um ex-analista da CIA teria dito a Moore:

‘A Casa Branca tinha um acerto perfeito com ela. Chalabi fornecia ao pessoal de Bush as informações de que eles necessitavam para os seus objetivos políticos e passava o mesmo material para Judy. Então ela procurava a Casa Branca, que já tinha ouvido a história e a corroborava. O Pentágono também confirmava as coisas, o que fazia sentido porque trabalhava de perto com Chalabi. Pena que Judy não tenha gasto um pouco mais de seu tempo falando com aqueles de nós que tínhamos informações que contradiziam quase tudo que Chalabi afirmava’.

Judith é uma senhora repórter e escritora. Prêmio Pultizer, em 1990 publicou, em co-autoria, Saddam Hussein and the crisis in the Gulf. Em 2001, dessa vez sozinha, Germs: biological weapons and America´s secret war. Matérias, assinou centenas.

Depois da queda de Bagdá, em abril do ano passado, ela se desentendeu com o chefe da sucursal do NYT, John Burns, que não gostou de saber que Judith estava escrevendo uma matéria sobre Chalabi, já de volta à sua terra, sem avisá-lo.

Na troca de e-mails entre ambos, revelada pelo repórter de mídia do Washington Post, Howard Kurtz, ela se justificou dizendo que conhecia Chalabi havia cerca de dez anos e que ele ‘proporcionara ao nosso jornal a maioria das matérias exclusivas de primeira página sobre as WMD’. Mais tarde, se desdisse.

Ela deve ter falado a verdade. Em 2001, por exemplo, Chalabi arranjou-lhe uma entrevista – em Bangkok, Tailândia – com um engenheiro civil iraquiano fugido, Adnan Ihsan Saeed al-Haideri. Da entrevista resultou, em 20 de dezembro daquele ano, a matéria de primeira página intitulada ‘Iraquiano revela reformas em locais para armas químicas e biológicas’.

No lide se lê que Adnan contou ter ‘trabalhado pessoalmente na reforma de instalações secretas para armas biológicas, químicas e nucleares em poços subterrâneos, casas de campo particulares e sob o Hospital Saddam Hussein em Bagdá há um ano apenas’.

Há duas semanas, um repórter da cadeia Knight Ridder (31 jornais, entre eles o Philadelphia Inquirer, Miami Herald e Detroit Free Press) informou que era tudo mentira. ‘Nesse caso’, diz o NYT, ‘parece que fomos enganados junto com o governo. Mas até agora não relatamos isso aos nossos eleitores’.

O pior momento de Judith Miller foi a bombástica matéria publicada – sempre na primeira página – em 8 de setembro de 2002, sob o título ‘EUA dizem que Hussein intensifica busca de peças para a bomba A’.

Para James Moore, ‘nenhuma reportagem, isoladamente, fez mais para levar adiante a causa neoconservadora’.

Escrita a quatro mãos com outra estrela, o correspondente de assuntos militares do NYT Michael Gordon, baseado em Washington, a matéria abre dizendo que o Iraque ‘embarcou numa caçada mundial por materiais para fazer uma bomba atômica’. As fontes são anônimas ‘autoridades do governo Bush’.

Os materiais eram os tais tubos de alumínio que o Iraque adquirira para, segundo os americanos, servir de recipiente a combustível nuclear. No mea-culpa, o NYT ressalta que a alegação provinha ‘das melhores fontes de inteligência americana disponíveis à época’, mas dá a mão à palmatória ao observar que, ainda assim, a história – depois completamente desmoralizada – deveria ter sido contada com mais cuidado.

O cuidado não só foi pouco, mas em surdina. A sugestão de que os tubos poderiam ser usados em armamento convencional ‘foi sepultada profundamente’, se desculpa a nota: só foi mencionada lá pela 1.700ª palavra de um texto de 3.600.

Cinco dias depois os repórteres descobriram que o assunto era objeto de debates entre os espiões. O fato foi citado numa matéria enfiada na página 13, sob um título que não dizia nada sobre isso.

Defesa automática

Passaram-se quatro meses da primeira matéria até que o NYT abrisse espaço para os céticos, quando a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) contestou a versão bombista do governo. A contestação saiu na página 10.

Okrent sustenta que culpar apenas Judith seria ao mesmo tempo errado e injusto. Ele exemplifica com uma matéria de sua autoria, de 4 de maio do ano passado, a que deram o título ‘Especialistas americanos encontram material radiativo no Iraque’. Só que ela escrevera no lide que era improvável que a descoberta tivesse relação com armamentos.

Os editores da nota do NYT acharam melhor não citar o nome de Judith Miller – só, elogiosamente, o do seu parceiro Michael Gordon. De todo modo, segundo Kurtz, do Post, o editor-executivo do NYT Bill Keller a descreveu em março como ‘uma repórter esperta, com boas fontes, empenhada e destemida, com apurado instinto para notícia e apetite para assuntos amedrontadoramente difíceis’.

Mas, ao lado de tudo isso, tinha ligações com o Middle East Forum, uma organização que advogava abertamente que os Estados Unidos derrubassem Saddam e para a qual ela fazia palestras. Perguntada a respeito por James Moore, o do artigo no Guardian, respondeu: ‘Meus pontos de vista são bem conhecidos. Essa gente nos odiava tanto que se pudesse pôr as mãos nas WMD as usaria. Sim, eu sinto medo de verdade por meu país’.

Defendendo-se das acusações de Massing, no NYRB, Judith disse uma coisa que não honra esse perfil. O fato de não terem sido encontradas as armas atribuídas a Saddam, argumentou, ‘levanta questões reais sobre quão boa era a nossa inteligência’.

Vá lá que seja (supondo que a inteligência tenha errado e não mentido). Mas aí ela tropeça: ‘Culpar o mensageiro é perder de vista o que interessa’.

Por menos que se deva fixar numa única pessoa, no caso Judith Miller, toda a análise da desgraceira jornalística aprontada por alguns dos melhores e mais brilhantes profissionais da América, a teoria do mensageiro inocente não fica em pé um segundo.

Claro que o mensageiro e a empresa que o paga são culpados quando correm a transmitir mensagens – e mensagens convenientes para o governo – com um entusiasmo inversamente proporcional à prudência, se não ao ceticismo que se espera dos praticantes do ofício, enquanto escondem aquelas que põem em dúvidas as primeiras. E isso tudo quando se trata, afinal de contas, de mensagens de vida e morte.

Alguém poderá argumentar que o destaque a se dar a uma informação deve ser tanto maior quanto mais importante a fonte que a transmitiu – mesmo que o tenha feito ‘em off‘.

Ocorre, porém, que, se o pessoal de Washington do grupo Knight Ridder bateu a concorrência em matéria de reportagens certas sobre a cascata das WMD, foi porque – como explicou a Michael Massing o chefe da sucursal John Walcott – os repórteres evitaram ir atrás das fontes de alto nível, de secretário-assistente para cima, que jogavam fechados com a Casa Branca, preferindo o ‘proletariado’ das agências oficiais, os analistas mais reticentes diante das ‘verdades’ do bushismo.

[De Okrent sobre o off: ‘Nada é mais tóxico para o jornalismo responsável do que uma fonte anônima. Muitas vezes, nada é também mais necessário; matérias cruciais jamais chegariam a ser impressas se tivessem que citar um nome junto a cada informação. Mas um jornal tem o dever de convencer os leitores por que acredita que as fontes não identificadas dizem a verdade. A defesa automática do editor – ‘Não estamos confirmando o que ele diz, mas apenas relatando’ – pode se aplicar a declarações de pessoas que as assumem. No caso de fontes anônimas, é pior do que nenhum defesa. É uma licença outorgada a mentirosos’.]

Na gaveta

Pena – e ponha-se pena nisso – que as embocadas do Knight Ridder não tenham conseguido a merecida repercussão, nem junto à elite jornalística do eixo Washington-Nova York. Vai ver porque a cadeia não tem jornais ali, nem em Chicago ou Los Angeles, as duas outras cidades politicamente mais importantes dos EUA.

De qualquer forma, contraste-se a atitude profissional do reportariado do Ridder com aquela, assumida por Judith numa entrevista de rádio, típica do jornalismo chapa-branca. Sem tirar nem pôr:

‘Meu negócio não era coletar informações e analisá-las independentemente, como uma agência de inteligência; meu negócio era contar aos leitores do New York Times, da melhor maneira que conseguisse, o que as pessoas dentro dos governos, que tinham alto grau de autorização para lidar com assuntos de segurança e que não deviam estar falando comigo, diziam uns aos outros o que pensavam sobre o que o Iraque tinha e não tinha na área das armas de destruição em massa’.

Pois bem. Mesmo sem ir longe nos juízos de valor sobre uma forma e outra de cobrir questões de guerra e paz – ou, pensando bem, quaisquer outras –, o fato é que o pessoal da escola Judith Miller de jornalismo quebrou a cara e o pessoal da pedestre escola Knight Ridder ganhou o dia.

Escreve o briguento Jack Shafer, com razão, que a nota do NYT – ‘embora não requeira muita coragem desancar os iraquianos no exterior um par de dias depois que o governo dos EUA deu ao antigo exilado-chefe Ahmad Chalabi um grande beijo de despedida’ –, como demonstração de accountability, ‘excede por um múltiplo de 100 o que a maioria do equivocado corpo de imprensa tinha feito’.

Mas se há uma passagem da nota que não se segura é a que pretende responder por que o NYT derrapou e tornou a derrapar vezes seguidas nas reportagens sobre as fictícias ligações entre o Iraque e a al-Qaeda e as não menos fictícias armas proibidas de Saddam.

O jornal concentra a culpa na volúpia pelo furo. ‘Editores de vários níveis, que deveriam estar desafiando os repórteres e pressionando por mais ceticismo’, oferece a nota, ‘estavam talvez empenhados demais em publicar correndo os furos no jornal.’

[De Okrent sobre o NYT e o furo: ‘Um jornalista da velha guarda do Times me disse recentemente que havia época no passado não tão distante quando os editores insistiam na máxima ‘Não seja o primeiro a dar; seja o primeiro a dar direito’. Isso logo mudou para ‘Seja o primeiro a dar e a dar direito’’.]

Se fosse só pelo furo, quando os furos eram desmentidos por outras fontes – desmentidos que também eram exclusivos, portanto, furos – por que os mesmos sedentos editores deixavam de correr?

Okrent cita o caso da reportagem de James Risen ‘Assessores da CIA se sentiram pressionados ao preparar relatórios sobre o Iraque’. A matéria foi entregue alguns dias antes da invasão. Ficou na gaveta uma semana. E quando saiu, três dias depois do início da guerra, acabou enterrada na página 10 do segundo caderno.

Direitona raivosa

Eis que se volta ao ponto de partida. O papel inglório desempenhado pelo NYT e por outras publicações respeitáveis dos Estados Unidos na armação da guerra ao Iraque não se explica, nem em pensamento, por fatores estritamente jornalísticos, mas pela sua atitude de subserviência ao bushismo no poder.

Essa atitude, raciocina Paul Krugman, resultou de uma combinação de fatores, como a já mencionada política de intimidação da Casa Branca para silenciar o jornalismo independente.

A isso se juntaria o que ele chama ‘patriotismo fora de lugar’ e a dificuldade de muitos profissionais tarimbados de acreditar que o presidente dos Estados Unidos pudesse ser desonesto em relação a questões de tamanha gravidade.

Krugman cita outra causa ainda, que rivaliza em importância com a intimidação – e, a rigor, é uma forma de intimidação: a tirania da imparcialidade.

‘Jornalistas de posições moderadas e liberais, tanto repórteres como comentaristas, freqüentemente se viram do avesso para dizer coisas amáveis sobre os conservadores’, Krugman acerta na mosca, na linha do também citado Eric Alterman, o do livro. ‘Há não muito tempo, muitos comentaristas que agora são críticos cáusticos de Bush pareciam desesperados em se diferenciar dos ‘irracionais que odiavam Bush’, que não odiavam nem eram irracionais – e cujas críticas parecem bastante suaves à luz das recentes revelações’.

Uma das faces mais feias da atual tragédia política americana é a direita ter conseguido acuar o jornalismo liberal, cuja expressão maior é o NYT. Muitos, da turma do primeiro time, não só fizeram malabarismos com fatos e palavras e formas de apresentá-los – como quem diz ‘ó conservadores, vejam como somos imparciais’ – mas ainda deixaram de procurar as verdades que a nova direitona raivosa escondeu ou deformou. [Texto fechado às 10h17 de 30/5]