Em dado momento de sua fala no Colóquio Latino-Americano sobre Observação de Mídia, promovido pelo Observatório da Imprensa, o americano Dan Gillmor, autor de We the media, a bíblia do chamado jornalismo-cidadão – informação e interpretação divulgadas em sites e blogs por não-jornalistas, ou não necessariamente jornalistas –, atirou no que viu e acertou no que não viu. [Leia aqui We the media em inglês; e aqui, em espanhol.]
O que ele viu, com absoluta nitidez, foi a necessidade de os jornalistas que desejam que a mídia-cidadã prospere “encorajar as pessoas para que façam direito” aquilo que, a seu ver, a mídia convencional faz torto: jornalismo desamordaçado e crítico dos donos do poder e do dinheiro, de gente capaz de ouvir para gente que quer ser ouvida. O “como encorajar” os não-profissionais, indicou, é o desafio posto diante dos profissionais que identificam nas novas tecnologias o abre-te-Sésamo para a verdadeira democratização do acesso aos fatos e do debate público.
O que ele acertou sem querer é a virtual impossibilidade do tal “fazer direito” à margem, ou pior, na contracorrente do que em outros tempos se diria ser o modo de produção do jornalismo de qualidade. Este, como se sabe, se desenvolveu aproximadamente a partir dos anos 20 do século idem nas sociedades democráticas de massa do Ocidente e, mais cedo ou mais tarde, foi importado por tantos quantos países livres o suficiente para adotá-lo.
Sinônimo de modo de produção é a disciplina do ofício – o conjunto de valores, padrões, atitudes e procedimentos que deve orientar de ponta a ponta o processo jornalístico, desde a escolha do que divulgar até a definição da fisionomia e do contexto com que a informação chegará ao leitor, passando evidentemente pela apurática [o news gathering de que falam os americanos] e pela eventual agregação de análises e tomadas de posição.
Idealmente ao menos, o ponto crucial dessa disciplina é o sistema de freios e contrapesos nela embutidos, graças aos quais se manteria em patamares aceitáveis a inescapável margem de erro do sempre imperfeito trabalho de descobrir, contar e comentar o que parece ser a verdade para os seus descobridores, narradores e comentaristas.
Baseado na accountability, a responsabilização e a prestação de contas de um nível para outro na hierarquia das redações, na prioridade dada ao interesse público e no respeito à ética profissional, o sistema é a pedra de toque da credibilidade de um órgão de mídia.
É o que pode torná-lo respeitável perante os atores políticos, econômicos e sociais do seu meio. É o que também pode dar ao seu consumidor o que o dinheiro dele pode comprar: informação clara, objetiva e certificada, “sem medo nem favor” – conforme o adágio clássico, tipicamente mais fácil de falar do que de obedecer.
Arrogância olímpica
Carregando no pessimismo, se esse modo de produção produzir o resultado desejado em pelo menos 50% dos casos – edições, matérias, linhas, sons, pixels, lo que se quiera – o jornalismo convencional já terá dito a que veio, tantas e tão pontudas as pedras no caminho do trabalho informativo que valha o seu sal.
Pois bem. Sem essa disciplina, será uma proeza monumental se o mesmo resultado for alcançado em até 50% dos casos. Os números têm um quê de metafórico, naturalmente, mas é para ressaltar a essência do argumento.
Graças ao seu modus operandi (no bom sentido, no bom sentido) o jornalismo convencional – a mainstream media (msm) mais genificada que a própria Geni da canção – tem uma vantagem de partida sobre o mais bem-intencionado e íntegro jornalista-cidadão para dar certo. Certo no sentido último de transmitir de forma inteligível e honesta todos os lados das verdades passíveis de serem conhecidas sobre os assuntos que interessam sobremodo à sociedade.
Isso é que o jornalista Dan Gillmor e o pessoal da sua tribo aparentemente relutam em entender: em geral – e esse em geral é uma ressalva importante, mas não a ponto de derrubar o raciocínio –, o jornalista-cidadão dispõe de condições menos favoráveis para fazer a coisa certa do que o cidadão-jornalista que opera sob aqueles procedimentos, sinônimo, no caso, de constrangimentos.
E como poderia ele operar sob aqueles procedimentos/constrangimentos se ele faz jornalismo-cidadão como um franco-atirador? Simplificando: sem um editor fungando no seu cangote e outro editor fungando no cangote do primeiro e assim por diante? Sem, em menos palavras, os freios e os contrapesos.
Tanto assim que o jornalismo-cidadão mais bem-sucedido é aquele que mimetiza na internet a malha de técnicas, filtros e rotinas característicos das redações físicas. É o caso do pioneiro site OhmyNews, da Coréia do Sul, onde editores hierarquizam as informações recebidas conforme critérios explícitos [e cujos autores são remunerados de acordo].
Dito de outro modo, a mídia convencional sofre de descrédito não porque a disciplina com a qual está em tese comprometida não preste. Mas porque o compromisso é freqüentemente ignorado.
Jayson Blair e Judith Miller, para citar dois exemplos que rodaram o mundo, aprontaram no New York Times porque os goleiros da redação ficaram arrumando as meias enquanto eles aprontavam, e não porque os goleiros – e todo o time – olham o leitor de cima para baixo, com supremo desdém e olímpica arrogância. O que a maioria dos jornalistas fazemos, sim, mas aos poucos vamos aprendendo a desfazer, de tanto levar palmadas dos colegas que nos observam e dos não jornalistas nos seus blogs.
Autocongratulação e complacência
Mas há mais nessa história toda do descrédito da mídia do que diz a apologia costumeira do jornalismo-cidadão. E não dá para deixar barato esse mais.
Nos Estados Unidos, onde começou e virou esporte de massa o pega-pra-capar da msm, o primeiro grito não partiu de alguma esquerda pê da vida com a subserviência dos gigantes da comunicação aos gigantes do Capital que a degradam em entretenimento, ou aos donos do poder político por eles financiados.
Quem berrou e passou anos berrando “pega” foi a direita. E ela não gritava “pega a mídia convencional”. Gritava “pega a mídia liberal” – americanês para “esquerdista”.
A direita investiu contra jornais como o New York Times, o Washington Post e o Los Angeles Times [três dos cinco maiores do país] e telejornais como o da CBS [o de maior prestígio na TV aberta], acusando-os de impor ao povo americano, a proverbial maioria silenciosa, uma agenda viesada e extremista de falsos valores a serviço de minorias estridentes.
A lista das minorias das quais a imprensa seria cúmplice é extensa como a palavra ultramontanismo: mães solteiras aproveitadoras da seguridade social; delinqüentes supostamente vítimas de racismo e iniqüidades sócio-econômicas; defensores do aborto em nome de uma visão antiamericana e atéia do que é vida humana; homossexuais querendo aviltar a instituição do casamento e adotar crianças ainda por cima; radicais chiques da universidade e cercanias pregando que a bandeira da ONU deve ser hasteada acima da bandeira nacional – e uma infinidade de etceteras.
A crônica dessa infâmia está contada em dois livros indispensáveis para quem quer chegar às raízes da balela da alegada superioridade moral dos destemidos patriotas da blogosfera americana sobre a cosmopolita msm de espinha caída. [O que não quer dizer que não haja uma blogosfera “liberal”; mas os caninos da outra são, se não mais numerosos, mais afiados, como sentiu na carne o deão do telejornalismo da América, Dan Rather, deposto da CBS.]
Um dos livros é o melhor estudo da contra-revolução conservadora iniciada na virada dos anos 1960 para 1970, e afinal vitoriosa em 2000, que se lançou sobre a imprensa com ímpeto linchador. Chama-se, apropriadamente, The right nation. Seus autores são dois brilhantes jornalistas convencionais ingleses, Adrian Wooldridge e John Micklethwait, da Economist.
O outro é do americano, também jornalista, Eric Alterman. É um persuasivo esforço de provar, com carradas de fatos, que é fictícia e desonesta a teoria de que a grande imprensa americana se distanciou do sentimento popular por causa de seu “viés liberal”; daí o seu título What liberal bias?
Aconteceu o contrário, diz e demonstra Alterman: de tanto ser acusada de favorecer a esquerda, a mídia americana mergulhou em um autopatrulhamento devastador e passou a ser correia de transmissão da ideologia que engendrou o bushismo.
O que deu no efeito perverso de aumentar o seu descrédito – para o deleite de blogueiros direitistas (perdão, libertários) e de esquerda, uns e outros embarcados numa viagem de denuncismo, autocongratulação e complacência consigo próprios que parece não ter fim.
Não é toda, de forma alguma, mas esse contingente representa uma parte ponderável do “nós, a mídia” de que Dan Gillmor é o mais distinguido porta-voz.
Ópera-bufa americana
Um terceiro livro, que está para chegar às livrarias americanas e pode ser encomendado pela internet, fala mal da msm pelas razões certas. É, em tradução livre, “A maior matéria jamais impingida: o declínio e a queda da verdade de 11/9 ao furacão Katrina” (The greatest story ever sold: the decline and fall of truth from 9/11 to Katrina), do colunista e antigo crítico teatral do New York Times, Frank Rich.
Ele mostra como publicações progressistas a exemplo do semanário The New Republic, se alinharam com o neoconservador Weekly Standard no apoio à invasão do Iraque. E se pergunta como os melhores, mais rigorosos e reputados órgãos de mídia caíram nas patranhas de Bush para atacar um país que não abrigava terroristas, não tinha armas de destruição de massa e, portanto, não representava ameaça alguma aos Estados Unidos.
Em suma, o que motivou essa “paralisia do ceticismo”, na feliz expressão do resenhista anglo-holandês Ian Buruma, outro autor sério.
Intimidação é parte da resposta. Não espanta, lastima Rich, que a mídia convencional, depois de ser continuamente acusada de ter viés liberal, preferiu baixar a cabeça. Houve exceções, porém. Periódicos como o The Nation e o New York Review of Books enxergaram antes da msm a grande empulhação impingida pelo bushismo.
São duas publicações em que reportagens, artigos e resenhas passam pela rigorosa disciplina profissional que lhes dá, e aos seus autores, o merecido prestígio. Pois ali se acredita que a opinião é livre, mas os fatos são sagrados. Ou, que todos temos direito às nossas opiniões, mas ninguém tem direito aos seus próprios fatos.
O mesmo vale para a cadeia de jornais Knight Ridder, recentemente vendida para um mercador de Wall Street, sob a batuta do seu extraordinário chefe da sucursal de Washington, John Walcott.
A outra parte da resposta interessa ainda mais. As mudanças no processo de captura e divulgação de informações levaram os jornalistas tradicionais a uma posição incomumente defensiva. O fato de mais gente do que nunca poder expressar suas opiniões, nos talk-shows de rádio e nos websites, talvez equivalha a mais democracia – mas solapou a autoridade dos editores, cuja capacitação supostamente lhes permitiria levantar barreiras contra a asneira e o preconceito. E a deliberada confusão entre notícia e entretenimento, na TV, causou danos adicionais.
E assim se chega ao resumo da trágica ópera-bufa americana, que os jornalistas da mídia tradicional brasileira bem faríamos em não perder de vista. Nas palavras de Frank Rich: “Quanto mais o verdadeiro jornalismo pisava na bola, mais fácil ficou para a infoganda [propaganda travestida de informação] do governo preencher o vácuo.”