Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Nos passos do filósofo e repórter

Escrever reportagens cheias de maneirismos literários remonta ao século 19 e, nas duas primeiras décadas do 20, três nomes se destacaram: Jack London, escritor e repórter; John Reed e Albert Londres, fundamentalmente jornalistas. De comum, perceberam que não bastava ver, mas, dada à complexidade dos conflitos em que se envolviam, era necessário se misturar aos dramas, ao caos. É disso que é feito as grandes reportagens. Claro, há os riscos, o preço, às vezes com requintes de barbárie como pagaram Tim Lopes, assado vivo numa favela carioca, e Daniel Pearl, decapitado no Paquistão. Jornalismo também é uma questão de fé, e, como nas religiões, também têm os seus mártires.

Mas, se nem tudo são flores, nem sempre a tragédia que descrevemos nos alcança. Pode-se sobreviver e contar, como Bernard-Henri Lévy (BHL), cujo corajoso empreendedorismo intelectual o faz, desde os anos 1970, peregrinar por guerras esquecidas, algumas com mais de 30 anos de existência, e cujo resultado, na verdade, importa a pouca gente. A lista é grande: Afeganistão, Angola, Bósnia, Burundi, Colômbia, Ruanda, Sri-Lanka, Sudão etc.

Por que esta fascinação pela guerra e seus horrores? Questão complexa, validada pelos testemunhos fortes em livros como La pureté dangereuse (A pureza perigosa), de 1994, abordando conflitos étnicos e fanatismos religiosos; Réflexions sur la guerre, le mal et la fin de l’histoire (Reflexões sobre a guerra, o mal e o fim da História), de 2002. Mas os escritos de Lévy, bastante autobiográficos, não se circunscrevem aos conflitos bélicos, como atesta o romance Les derniers jours de Charles Baudelaire (Os últimos dias de Charles Baudelaire), de 1988, pelo qual recebeu o prêmio Interalité.

Sem isenção

Lévy esteve em Porto Alegre, no começo de maio do ano passado. Veio como palestrante do ‘Fronteiras do Pensamento’, evento patrocinado pela Copesul, para falar sobre o seu último livro, American vertigo, um road-book. Trabalho de encomenda, perambulou, com direito a chauffeur e companhia, pelos EUA, compondo um personalizado e atualizado remake de De la démocratie en Amérique (A democracia na América), escrita por Aléxis de Tocqueville, em 1830. Na capital dos pampas, Lévy poderia ter seguido as pegadas e rever as impressões de outro viajante francês que por aqui deixou sua marca, Auguste de Saint-Hilaire. Não o fez por falta de interesse, patrocínio etc. Fica a sugestão.

Muita coisa já foi dita e escrita sobre American vertigo e sobre a participação de Lévy no ‘Fronteiras’: a camisa aberta no peito (fato muito comentado pela mídia local), a cabeleira esvoaçante etc. Isso já virou embrulho de peixe, como se dizia na pré-história. Vale o rescaldo, um ano depois, sobre jornalismo, pois é isso que faz Lévy, e com muito talento.

Personagem sartreano, Lévy marca pelo que faz, ou seja, escreve. Tal qual Paulo Hesse (o nietzcheano diretor de jornal criado por Paulo Francis em Cabeça de papel), Bernardo-Henri Lévy não precisaria ser o que é, ou o que se tornou. Sempre foi rico, boa pinta, e o termo inteligente seria pobre para alguém tão sofisticado e de talentos tão ecléticos enquanto narrador. Inteligência é uma coisa inerente à espécie humana; já o conhecimento, não. Não é gênio, mas isso é raro.

Principal expoente da corrente que, nos anos 1970, recebeu a alcunha de ‘Novos Filósofos’, Lévy é fruto da guerra fria e do fracasso do modelo de gestão stalinista, que passava por socialismo. Em maio de 1968, por ocasião da revolta estudantil, era calouro do curso de filosofia. Professores: Jacques Derrida e Louis Althusser. Mas é Jean-Paul Sartre o modelo do qual se reivindica e se inspira, partindo do princípio de que cabe ao filósofo investir nos acontecimentos e nas lutas do seu tempo, assumir sua responsabilidade e, se precisar, sujar as mãos.

Hoje, aos 59 anos, Lévy é tão prolixo quanto era o seu conterrâneo Albert Camus, também, como ele, pied noir (pé negro, alcunha dada aos franceses nascidos na Argélia), aventurando-se por diversos campos narrativos: ensaio filosófico, jornalismo, romance, dramaturgia, cinema. Mais jornalista que filósofo, e pour cause, Lévy é, sobretudo, um repórter – desde que, claro, não se procure nos seus textos imparcialidade ou isenção de opinião, pois, à la Sartre, vê o mundo como teatro de situações e, nele, é um observador engajado.

Resistência no rádio

Como não poderia deixar de ser, não falta oposição a este intelectual célebre, midiático, o que atestam as quatro biografias dedicadas a ele, e cujas acusações variam de ‘impostor’, ‘megalômano’, a filósofo de pensamentos prêt-à-porter. Mas, após inúmeras polêmicas, ninguém, atualmente, poderia lhe negar o valor de ter tocado profundamente, através do livro L’ideologie française (A ideologia francesa), de 1981, num dos pontos mais obscuros da história da França: o colaboracionismo e a deportação de judeus durante a ocupação alemã (1940-44) na Segunda Guerra. Na obra, Lévy investiga e denuncia um certo fascismo à francesa, cujas características podem encontrar-se no eterno candidato da extrema-direita a presidência da República, o racista Jean-Marie le Pen.

Autor de 16 livros, também é realizador de documentários sobre a guerra nos Bálcãs e um filme de ficção, Le jour et la nuit (O dia e a noite), pelo qual recebeu o seguinte comentário de Jean-Luc Godard: ‘Ele não é nem cineasta nem escritor, deve ser um editor’.

Lévy parece estar em toda a parte e – apesar do cerco da crítica internacional, l’intellectuel à abattre, das tortas de creme que, como Bill Gates, volta e meia recebe na cara – sentir-se bem no papel de star. Ele tem explicações para isso, bem razoáveis, como a de ter sido o primeiro pensador moderno a compreender, organicamente, o poder das novas mídias eletrônicas, e que o debate sobre as lutas sociais não estava mais circunscrito às revistas ou universidades.

Entretanto, este viés moderno preserva a tradição romântica de artista engajado em lutas e ideais libertários. Assim, em 1971, atendeu ao chamado de André Malraux para a formação de uma brigada internacional para Bangladesh, durante a guerra de liberação contra o Paquistão. Desta aventura extraiu seu primeiro livro, Bangla-Desh, nacionalisme dans la révolution (Bangladesh, nacionalismo na revolução), de 1973. Mais tarde, com o escritor Marek Halter, levou uma aparelhagem para que os afegãos, que lutavam contra a ocupação soviética, inaugurassem a rádio Kabul.

Vino y pollo

Lévy, como Norman Mailer e Truman Capote, ou Tom Wolfe – principais expoentes do new journalism – costuma, em seus textos, empregar recursos da arte do romance lá onde só a narrativa factual da reportagem não seria suficiente para transmitir dados, sentimentos, conflitos. Tal é o caso do seu livro Quem matou Daniel Pearl? Nele, Lévy faz uma magnífica enquete jornalística, precisa, cativante, narrando a história do repórter do Wall Street Journal, seqüestrado, depois decapitado (Karachi, 2002) por um grupo de ‘loucos de Deus’.

Fatos, apenas fatos, mas, quando a verdade se esconde, foge, apelo ao imaginário. Daí a denominação ‘romanquete’ (romance-enquete). Lévy entrou na pele de Pearl e tentou evocar seus últimos pensamentos, suas hesitações e medos diante da lâmina do algoz iemenita que lhe rasgava a carne. Por quê? Pretensão de colocar-se no cerne dos seres e das coisas? Mentir ‘verdadeiramente’? Bancar o príncipe vidente ou, tal qual um roteirista, ficcionar um acontecimento histórico? Isso lhe valeu críticas ferozes, como o da viúva de Pearl, Mariane, que o acusou de estupro literário.

No Brasil, certamente, também encontrou loucos de diversos tipos: por futebol, por bundas, de fome, por roubar e matar. Sua presença, o prazer estético que os seus textos inspiram em pensar, viver, investigar, escrever, certamente causou um impacto positivo no universo intelectual e jornalístico brasileiro. A experiência de Lévy é um fator de energização, inspiração, naquilo que ele atribui como ‘uma concepção guerreira da busca da verdade’. Assim, pelo excesso de energia, vale para Lévy o que ele disse sobre Sartre, em seu enterro, em 1980: ‘É o nosso jovem!’

É preciso viver bastante para aprender a sê-lo. Ou, quem sabe, um pensamento de Eduardo Galeano, no Café Brasilero, Ciudad Vieja, em Montevidéu. Menu: carne de pollo y vino tinto, pois, como diz Galeano, ‘o corpo não é nem uma máquina, nem uma culpa, é uma festa’.

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Jornalista, mestre em Lingüística pela École des Hautes Études em Sciences Sociales, Paris, França, doutor em Letras pela PUC-RS, autor de João Antônio por João Antônio: literatura e malandragem