Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Novas realidades forçam jornalistas a repensar coberturas de eventos policiais

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

O agravamento da letalidade das operações policiais em vários países do mundo colocou profissionais autônomos e as empresas de comunicação diante do desafio de alterar as rotinas de cobertura jornalística. Dois fatores motivam esta revisão de políticas e comportamentos editoriais: o crescente belicismo das polícias e o impacto de vídeos, áudios e depoimentos de vítimas e testemunhas postados em redes sociais.

A imprensa norte-americana foi a primeira a perceber o desajuste entre a tradicional preferência dada às fontes da polícia, fazendo com que o noticiário fosse contaminado por um viés oficialista. A revista trimestral Nieman Reports, mantida pela respeitada Fundação Nieman, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, dedicou metade da segunda edição de 2021 ao tema “Redrawing the Line” (Revisando condutas, em tradução livre), propondo uma mudança nas estratégias jornalísticas de cobertura de eventos policiais.

Os textos publicados pela Nieman Reports mostram como aumentou a percepção entre repórteres, editores, fotógrafos e cinegrafistas norte-americanos de que a polícia do país comete cada vez mais excessos na repressão de protestos, como ocorreu após a morte de George Floyd, em junho do ano passado. “A repetição de incidentes violentos mostrou que algo precisa mudar” afirma Adeshina Emmanuel, autor do texto principal do informe.

O dilema dos repórteres

Aqui no Brasil, começa também a ganhar corpo entre os jornalistas autônomos e profissionais contratados por empresas jornalísticas, a percepção de que a cobertura de episódios como o da ação policial na favela carioca do Jacarezinho, no começo de maio, precisa levar em conta a complexidade e diversidade de versões, contrariando a postura tradicional da imprensa, que normalmente confiava mais na versão oficial do que na das vítimas e suspeitos.

É a imprensa tendo que se adaptar a uma nova conjuntura social e a uma dinâmica político/institucional nas organizações policiais. Os segmentos mais pobres da sociedade, e que sempre tiveram reduzido acesso à informação, hoje usam rotineiramente as redes sociais, câmeras, gravadores e recursos para troca de mensagens, que aumentam sua capacidade de apresentar evidências de excessos policiais.

A multiplicação de fontes alternativas de informação textual, visual e auditiva ofereceu aos jornalistas dados, fatos e percepções que antes dificilmente chegavam ao conhecimento da imprensa, o que fortalecia o monopólio da versão policial. As novas tecnologias digitais criaram as condições para uma nova forma de cobrir protestos de rua, manifestações sociais e atos de violência contra mulheres, crianças ou imigrantes.

Por seu lado, nas organizações policiais aumentou a militarização dos processos de repressão e investigação como resposta à radicalização dos conflitos sociais e à presença de organizações criminosas e das milícias. A cobertura jornalística de eventos policiais mostra hoje que agentes, delegados e detetives tratam qualquer investigação com uma postura bélica, desde as atitudes até o uniforme e as armas usadas. Os policiais, civis e militares, passaram a viver num estado de guerra permanente.

O visual das polícias em todo o mundo é hoje quase o mesmo do usado por exércitos em combate. Trajes camuflados, fuzis de assalto, munição de alto poder destrutivo, veículos blindados tipo “Caveirão” e tratamento violento de presos ou suspeitos. Isto tudo somado ao predomínio da postura tipo “Rambo” de agentes, delegados e detetives. A parafernália de combate é ostensiva até mesmo em operações de busca em endereços nobres em grandes capitais. Importa acima de tudo mostrar força e poder, para gerar medo.

A terra de ninguém

O problema é que a dinâmica do agravamento das tensões sociais afeta o desempenho do jornalismo, pois os profissionais acabam sendo empurrados para uma “terra de ninguém”, o jargão militar para definir o espaço entre tropas inimigas onde qualquer indivíduo pode ser morto por qualquer um dos lados. No caso da ação da polícia do Rio de Janeiro, na favela do Jacarezinho, em 6 de maio, as versões dos agentes e dos moradores foram diametralmente opostas, o que dificultou enormemente o trabalho dos repórteres.

Qualquer tentativa de transmitir ao leitor uma compreensão do que ocorreu fatalmente acabaria gerando críticas de partidarismo tanto por policiais como por parentes das vítimas. Mas houve um esforço inédito de alguns jornais cariocas em procurar contextualizar a morte de 27 civis e de um policial, dando destaque à letalidade da ação promovida pela Polícia Civil. O enfoque permitiu ao público perceber o grau de violência usado na operação e o trauma que ela causou junto à população da favela. A tradicional justificativa policial de que a ação visava combater o narcotráfico acabou ficando em segundo plano.

A atitude dos repórteres de jornais cariocas foi semelhante à que seus colegas norte-americanos passaram a adotar recentemente depois da sucessão de mortes de civis negros por policiais brancos em várias cidades dos Estados Unidos, como o assassinato de George Floyd, há um ano em Minneapolis. Segundo a Nieman Report, redações de alguns jornais de Chicago, Nova York, Filadélfia, Washington e Minneapolis começaram a revisar procedimentos que tradicionalmente davam mais peso à versão policial do que a das vítimas ou participantes de protestos de rua. Além disso, repórteres passaram a dar mais espaço às testemunhas da ação policial.

O novo posicionamento de alguns jornais não acaba, no entanto, com a “terra de ninguém”, porque o repórter continuará tendo que enfrentar narrativas antagônicas alimentadas por antecedentes complexos e muitas vezes bem antigos. É o ônus da profissão, impossível de ser eliminado. As duas únicas alternativas são: investigação e equilíbrio. Investigar tragédias como a morte de George Floyd e o massacre do Jacarezinho exige um tempo e uma eficiência que nem sempre são possíveis diante do impacto emocional de ambas as tragédias.

Outra mudança importante é o fato de a imprensa passar a dar mais visibilidade a bancos de dados acadêmicos sobre violência urbana como o Núcleo de Estudos da Violência, da Universidade de São Paulo, e o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI), da Universidade Federal Fluminense. A coleta independente de dados sobre ações policiais permite contrabalançar as estatísticas oficiais, cuja exatidão passou a ser amplamente questionada devido à frequente disparidade de números.

A mudança das rotinas, normas e valores adotados na cobertura jornalística de eventos policiais ainda é embrionária, mas pode ter um papel chave no esforço para evitar a viralização do “estado de guerra” que já existe entre polícia e moradores de bairros suspeitos de abrigar delinquentes, como acontece no Rio e São Paulo, ou entre forças de segurança e grupos étnicos, como nos Estados Unidos.

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Carlos Castilho é jornalista, doutor em Engenharia e Gestão do Conhecimento pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária.