‘Preocupação com as nuances, os matizes de argumentos e fatos, fazendo relatos com fidelidade, sem tentar enquadrá-los em categorias preconcebidas.’ Este é o subitem ‘d’, do item 3, das novas ‘Diretrizes para Mudança Editorial’ do jornal Folha de S.Paulo. O texto completo pode ser lido neste Observatório da Imprensa: ‘Folha comunica novas diretrizes à Redação‘.
Logo após a leitura da nota no OI, acessei a Folha Online a fim de conferir se as mudanças já se teriam concretizado; queria saber se a Folha ‘agora’ se preocupava em fazer relatos com fidelidade, ‘sem tentar enquadrá-los em categorias preconcebidas’.
Dei de cara com o título: ‘Lula diz que é hipocrisia criticar farra das passagens da Câmara’ (sexta, 1/5). Isso estampado sobre a seguinte chamada: ‘Existe uma hipocrisia muito grande nessa história. Sempre foi assim. Não vejo onde está o tamanho do crime em levar a mulher ou o sindicalista para Brasília’, disse Lula.
O título, sem dúvida, enquadra o presidente como defensor da ‘farra das passagens’. Mas também revela a sutileza do redator, nuançando sem se preocupar com os matizes que interligariam os argumentos aos fatos. A ‘farra’ pressupõe o uso indiscriminado das passagens, distribuindo-as entre amigos, parentes e aderentes, seja para se divertirem em carnavais ou turistar mundo afora. E, para a Folha, Lula estaria defendo isso e chamando de hipócrita quem critica tais fatos.
Agência de viagens clandestina
Cliquei para ler a matéria de uma ‘nova’ Folha, ‘agora’ fazendo relatos com fidelidade, como prometera.
O texto começa (des)informando: ‘O presidente Luiz Inácio Lula da Silva chamou de hipocrisia as denúncias sobre o uso irregular da cota de passagens aéreas da Câmara pelos deputados federais. Lula disse que `sempre foi assim´ e que isso não é `crime´.’
Na verdade, Lula chamou de hipocrisia as insistentes denúncias sobre o ‘uso regular’ das passagens e condenou o uso ‘ irregular’, dizendo que nunca usou as passagens para que familiares ou amigos viajassem para o exterior, por exemplo.
E continua a Folha: ‘O presidente Luiz Inácio Lula da Silva admitiu hoje que usou a cota de passagem aérea da Câmara, quando foi deputado federal, para levar sindicalistas para Brasília. Para Lula, não é crime usar a cota de passagem aérea para essa finalidade.’
O ‘admitiu’, aí, ganha conotação de ‘confessou’, como se Lula estivesse reconhecendo um crime por ele cometido quando de seu mandato como deputado federal. Creio que o que ele fez não era crime; nem para Lula, nem para a própria legislação do Congresso. Provavelmente, crime mesmo é vender as passagens não utilizadas, através de uma agência de viagens clandestina, instalada dentro da própria Casa, conforme alguns noticiários de TV informaram que teria acontecido.
Grosseiras sutilezas
Lula defende que os parlamentares possam levar as esposas a Brasília, assim como militantes sindicais para debater e defender assuntos da classe. Daí a informar que Lula chamou de ‘hipocrisia’ as críticas à ‘farra das passagens’ é induzir o leitor menos atento a erro de interpretação.
Voltei ao OI e reli as recomendações da Comissão de Mudança Editorial da Folha. Desta vez fiquei matutando sobre o exposto no item 2: (…) ‘Não hesitar em pautar histórias que revigorem o prazer da leitura.’
Mas o que pode haver de estranho nisso? O ‘não hesitar’. Isso é o que me incomodou. Bom, eu não consigo entender como alguém poderia vacilar na escolha se tivesse em mãos histórias bem escritas, que despertassem o prazer da leitura. Arrisco o palpite de que a recomendação tem o objetivo de estimular jornalistas que teriam escrúpulos em pautar matérias sensacionalistas ou não gostam de adornar os textos com grosseiras sutilezas, nuances mal inseridas. ‘Não hesitem, mandem em frente!’
Parodiando antigo comercial de xampu: ‘Você se lembra da Folha? Continua a mesma. Mas as suas nuances…’
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Escritor, Rio de Janeiro, RJ