Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Novíssima, Ilustríssima e esquecidíssima

História faz bem, há quem diga que a nostalgia pode ser revolucionária: houve um tempo em que o New York Times levava anos para consumar alterações insignificantes nas fontes tipográficas ou na largura das colunas. No fim ninguém notava, apenas os especialistas e, óbvio, a visão dos leitores idosos. Quanto menos perceptível, melhor avaliada seria a mudança.


Sua majestade, o leitor, não poderia ser incomodado, mesmo num tempo em que as pesquisas de opinião eram raras. Seus hábitos de leitura eram sagrados, intocáveis. Sua relação com o jornal – ou, se quisermos, sua fidelidade ao jornal – fazia-se através de rígidas rotinas e rituais inflexíveis armando vínculos mútuos de confiança.


Uma pequena mudança na previsão do tempo e o sobressalto provocado pelo deslocamento de um articulista, cartum ou receita de bolos poderiam provocar graves rompimentos e debandada de assinantes. Alterações no visual e na organização do espaço exigiam demorados cuidados e extremadas precauções.


Não mexa no jornal, mexa com o leitor. Obrigue-o a pensar. Sensações mais fortes eram transmitidas através das notícias e neste caso os editores tinham carta branca para provocar trepidações inclusive visuais. A matéria prima e a função do jornal era – adivinhem! – o jornalismo. O tamanho das manchetes (uma, duas ou três linhas) e o uso de fontes diferenciadas (bold, negras, ou light, leves) resultavam de uma hierarquização natural, implícita no processo de relatar fatos antes mesmo de Gutenberg.


O lugar da opinião


Esta linguagem nuançada e tonal visava um entendimento, um diálogo, entre aqueles que até há pouco eram designados como emissor e destinatário e agora atendem pelo nome de mediador e mediado. Manchetes diárias em bold produzem o mesmo efeito de e-mails em maiúsculas. Jornais gritados não são ouvidos.


Vespertinos e tablóides usavam claves mais estridentes, mas obrigatoriamente graduadas. Matutinos permitiam-se o uso da gama completa de entonações e sinais sempre adaptados e regulados pelo peso específico do material que transportavam.


Em 1952, por intermédio do Diário Carioca (então dirigido por Danton Jobim e Pompeu de Souza), ocorreu a primeira revolução no moderno jornalismo brasileiro. A introdução do lead, lide, com a adoção da narrativa direta exigiu um redesenho dos jornais e uma distribuição menos atabalhoada do noticiário.


A revolução seguinte deu-se no Jornal do Brasil, em 1956, onde as inovações experimentadas quatro anos antes no DC foram combinadas à nova estética concretista. Liderados por Odylo Costa, filho, um grupo de jovens e brilhantes profissionais entre os quais o escultor Amilcar de Castro e os jornalistas Reynaldo Jardim, Janio de Freitas, Ferreira Gullar, Carlos Lemos, Wilson Figueiredo – para citar apenas alguns – produziu a mais feliz e duradoura reforma jamais feita na imprensa brasileira. Manteve-se intacta até os anos 1990 e mesmo diluída no jornal-matriz esparramou-se como paradigma da modernidade jornalística do norte ao sul do país. Alguns de seus aportes estão visíveis até hoje (chamadas de primeira página com textos-resumo, espaços em branco no lugar dos fios de paginação etc.).


O Jornal da Tarde é um caso à parte, especial: não foi uma reforma, foi um novo produto associado a um novo conceito inspirado no New York Herald Tribune – o jornal-revista aceso, criativo, alegre.


Este passado precisa ser coletado, ruminado e reciclado. O futuro não pode ser visto como banalidade ou ato de desespero. Coube à Folha de S.Paulo, em 1975, iniciar a mais original, a menos ostensiva e a mais eficaz reforma jornalística brasileira com profundas implicações no processo político.


Orquestrada por Cláudio Abramo e acompanhada de perto pelo publisher Octávio Frias de Oliveira, a reforma consistiu na simples reintrodução do ingrediente fundamental do jornalismo – a opinião – tornada inútil pela censura e autocensura do regime militar.


A promessa de uma distensão política levou Frias & Abramo a materializar um dos preceitos básicos da imprensa: podem existir jornais sem notícias, mas jornais sem opinião não sobrevivem.


Páginas permanentes


No magnífico desfile de grafismos exibidos na nova Folha de S.Paulo desde o domingo (23/5), há duas páginas-monumento, espaços-símbolo, ícones de perenidade no meio do turbilhão. Estão lá há 35 anos, desde junho de 1975, praticamente intocadas, desafiando os bulldozers da inovação.


O elegante conjunto formado pelas antigas páginas Dois e Três, agora designadas alfanumericamente como A-2 e A-3, foi refinado e retocado nas diferentes reformas do jornal mas ninguém conseguiu desmontar sua essência, estrutura e funcionalidade. Não conseguiram ou não tentaram. Por respeito, devoção ou incapacidade de produzir algo tão nobre e digno. Tão jornalístico e permanente.


Registre-se que a reforma que implantou estas tarimbadas e quase-gêmeas vitrines de opinião (criadas com semanas de diferença) não foi mencionada no histórico das mudanças e façanhas dos jornais do grupo Folha (caderno ‘Novíssima’, pág. 11).


Será mencionada na próxima reforma. Então, até lá.


 


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