Surrado e rangendo, o carro vermelho entrou pela rampa de acesso e parou do lado de fora de uma velha mansão inglesa. Uma mulher, alta e encurvada, saiu para a noite de novembro e entrou para dentro de casa. Na realidade, era Julian Assange, o chefão do WikiLeaks, que pusera uma peruca para se disfarçar como uma mulher idosa enquanto viajava de Londres para um esconderijo em Norfolk. A coisa pode ter sido um pouco dramática, mas não há qualquer dúvida sobre a proeminência de Assange entre um grupo de atores não convencionais que surgiu ultimamente nas empresas de comunicação.
Trata-se de organizações sem fins lucrativos que estão envolvidas em várias maneiras de jornalismo investigativo. Como as verbas para esse tipo de jornalismo foram cortadas pela mídia tradicional, eles preenchem a lacuna usando novos métodos baseados em tecnologia digital. Algumas delas disponibilizam informação governamental com o objetivo de promover abertura, transparência e engajamento em cidadania; algumas reúnem e publicam informação sobre abusos de direitos humanos; outras especializam-se no jornalismo investigativo tradicional e são patrocinadas pela filantropia.
E é aí que entra a WikiLeaks. Inaugurada em 2006, a organização pretendia ser “uma Wikipédia não censurável para vazamento e análise de grande número de documentos não localizáveis”, com o objetivo de “expor regimes opressivos na Ásia, no ex-bloco soviético, na África sub-saariana e no Oriente Médio”. Entre as inspirações, além da Wikipédia, a enciclopédia digital escrita por voluntários, estava o vazamento dos “Papéis do Pentágono” ao New York Times por Daniel Ellsberg durante a guerra do Vietnã, o que, em última instância, levou a Suprema Corte a determinar que “só uma imprensa livre e irrestrita pode expor, com eficiência, a decepção num governo”. A WikiLeaks recebe documentos de fontes sigilosas oficiais e oferece caixas postais anônimas. É patrocinada por doações e tem uma equipe de voluntários.
Caixas postais anônimas
Em seus três primeiros anos, a WikiLeaks publicou material vazado de uma ampla série de assuntos, como corrupção no Quênia, a igreja da Cientologia, os e-mails de Sarah Palin, os associados de um partido nacionalista britânico e um escândalo de petróleo no Peru. Mas em 2010 abandonou esse tipo de abordagem e adotou um novo tom, de editorial. Em julho desse ano, trabalhou com três organizações jornalísticas importantes – o New York Times, o semanário Der Spiegel e o Guardian – para divulgar 75 mil documentos secretos referentes à guerra no Afeganistão. Na época, em entrevista ao Economist, Julian Assange explicou que essa parceria lhe dava maior impacto do que se simplesmente colocasse o material na internet e esperasse que as pessoas o procurassem. “Na verdade, percebemos que a imprensa profissional tem faro para o que uma matéria será – o público, em geral, se envolve quando há uma matéria e aí pode se antecipar e enriquecer o material com mais dados.”
Um outro lote, de quase 400 mil documentos referentes à guerra do Iraque, foi divulgado em outubro, e em novembro cinco jornais começaram a publicar trechos de mais de 250 mil telegramas diplomáticos enviados por embaixadas norte-americanas por todo o mundo. Mas então a relação entre a WikiLeaks e seus parceiros da mídia já estava abalada e a própria WikiLeaks passava por grande desordem. Julian Assange lutava contra a extradição por tribunais britânicos a pedido de promotores suecos, que queriam interrogá-lo sobre duas suspeitas de agressão sexual; seu comportamento, cada vez mais arrogante, fez com que vários de seus principais associados o abandonassem. Ironicamente, a própria WikiLeaks proporcionou um vazamento e parte de seu material foi repassado a seus ex-parceiros da mídia, os quais entenderam que não seria mais necessário coordenar sua publicação com Julian Assange.
Apesar das dificuldades da WikiLeaks, sua abordagem vem sendo adotada por outros. A al-Jazira criou uma “unidade de transparência” com uma caixa postal anônima, no estilo da WikiLeaks. O Wall Street Journal inaugurou uma caixa postal em maio, mas foi criticado por não oferecer proteção suficiente aos vazadores. “Todo mundo acha a ideia interessante”, diz Alan Rusbridger, editor do Guardian, “mas se você o for fazer, tem que fazê-lo com segurança absoluta.”
Abertura e transparência
O próximo passo depende, em parte, do destino de Julian Assange e de Bradley Manning, um soldado norte-americano que foi acusado de passar informações confidenciais à WikiLeaks. Se os promotores norte-americanos conseguirem demonstrar que Assange incentivou Manning a vazar o material, podem tentar enquadrar o chefão da WikiLeaks em conspiração. Isso seria preocupante para as organizações jornalísticas em geral, pois abalaria a ideia de que os jornalistas possam desenvolver relações com fontes confidenciais sem terem medo de ser processados.
A WikiLeaks parece esperar que, por se autodenominar uma organização jornalística, será protegida pela Primeira Emenda. O campo “sobre” do site da WikiLeaks, que antes descrevia a organização como “uma excelente fonte para jornalistas”, foi re-escrito e agora descreve suas atividades como “jornalismo”, os membros da equipe como “jornalistas” e Julian Assange como “editor-chefe”. Já ocorreram muitas discussões sobre se Assange deveria ser considerado um jornalista; Alan Rusbridger prefere chamá-lo de “um novo tipo de publisher-intermediário”. Jay Rosen, da Universidade de Nova York, diz que esse tipo de discussão mostra que na era digital “as próprias fronteiras do jornalismo estão ruindo”. E a WikiLeaks não é o único exemplo.
A Fundação Sunlight, sediada em Washington, também defende mais abertura e transparência por parte do governo, mas de forma diferente da de WikiLeaks. Seu objetivo é tornar as informações do governo mais facilmente acessíveis, tanto para jornalistas quanto para cidadãos comuns. Seu site Transparency Data, por exemplo, é um banco de dados de contribuições para campanhas federais e estaduais, bolsas federais e contratos e divulgação de lobbies, retroativa a 20 anos; o site Party Time acompanha o circuito político-partidário; o site Checking Influence é um banco sobre dados de contribuições para campanhas e atividade de lobby por empresas. Tudo isso proporciona matéria-prima para jornalistas, mas a compilação e apresentação das informações às vezes desliza para o jornalismo.
Divulgação independente
Ellen Miller, cofundadora da organização, cita o exemplo do site Sunlight Live, que combina um fluxo de vídeos, ao vivo, sobre procedimentos governamentais com informações dos bancos de dados da Sunlight para contextualizá-los. “À medida que diferentes pessoas vão falando, conversamos sobre seus passados, se participaram de contribuições de campanhas, se estiveram envolvidas em lobbies”, diz Ellen Miller. “Isso é claramente jornalismo.” O site Sunlight Live ganhou um prêmio por inovação em jornalismo no ano passado e sua tecnologia será posta à disposição de outras organizações. O site também tem fotos de pessoas que comparecem a audiências públicas, para identificar quem faz lobbies. Isso também é jornalismo, diz Ellen Miller. “Queremos usar as ferramentas do jornalismo para forçar a abertura do governo.”
A linha que separa ativismo e jornalismo sempre foi pouco nítida, mas tornou-se ainda menos nítida na era digital. A Fundação Sunlight tem estado profundamente envolvida na campanha para forçar o governo norte-americano a fornecer mais informações sobre suas atividades, o que levou à criação do site data.gov em 2009 (embora atualmente seu patrocínio esteja ameaçado). Ocorreram iniciativas semelhantes na Grã-Bretanha, na Austrália e na Nova Zelândia e várias cidades e estados norte-americanos tornaram acessíveis informações sobre qualquer coisa, de contratos para abastecimento a acidentes de trânsito. Os websites desenvolveram formas amigáveis de apresentar o conteúdo aos usuários, como o projeto TheyWorkForYou, da mySociety.org, que fornece informação sobre políticos britânicos e começa a acrescentar resumos curtos de suas atividades. Isso é jornalismo? Não, diz Myf Nixon, porta-voz de mySociety, pois o website apenas agrega fatos que estão disponíveis em outros endereços. Porém, o mesmo poderia ser dito da Fundação Sunlight.
No mundo em desenvolvimento, campanhas por transparência vêm forçando uma maior abertura sobre fluxos de ajuda e controle de recursos naturais e os grupos engajados muitas vezes são as fontes mais confiáveis de informação sobre violação de direitos humanos. No passado, trazer esse tipo de informação para um público mais amplo significava trabalhar com organizações jornalísticas e fazê-las publicar a informação. Entretanto, graças à internet, as organizações não-governamentais (ONGs) agora podem publicar o material de forma independente. “A mesma internet que abriu um buraco nos orçamentos da mídia vem permitindo às ONGs atingir diretamente suas audiências”, diz Carroll Bogert, do Human Rights Watch (HRW), um grupo que empreende campanhas mundialmente, em seu relatório de janeiro. Isso, entretanto, implica que as ONGs mudem a forma de operar.
Jornalismo sem fins lucrativos
E isso está começando a acontecer. Atualmente, o HRW envia fotógrafos e produtores de rádio para trabalho de campo, ao lado dos pesquisadores. A Anistia Internacional está criando uma “unidade de informações” com cinco jornalistas e a ONG Médicos Sem Fronteiras produz fotografias e vídeos de seu trabalho. “Estamos começando a compreender que agora existe uma abrangência de pessoas qualificadas muito mais ampla, que são íntegras e competentes e podem fazer parte desse quadro a ser relatado – e as ONGs são parte desse quadro”, diz Sameer Padania, assessor de grupos de direitos humanos para o uso de tecnologia. Mas, por mais difícil que seja o relatório a ser feito, ele é produzido para atender a uma agenda específica. Portanto, poder verificar a precisão e origem do material é vital, diz ele.
Dan Gillmor, um jornalista veterano que agora é professor na Faculdade de Jornalismo Walter Cronkite, da Universidade estadual do Arizona, observa que as melhores reportagens sobre as condições de Guantánamo foram feitas pela American Civil Liberties Union e que o HRW produziu um excelente trabalho sobre o abuso de empregados domésticos na Arábia Saudita. Mas ele diz que reportagens feitas por grupos de ativistas muitas vezes não chegam a ser jornalismo. Às vezes, esses grupos não dão suficiente peso ao outro lado, nem refletem inteiramente as matizes de um assunto. Afinal, diz Dan Gillmor, o que importa não é se uma dada pessoa é ou não jornalista, e sim se o trabalho que ela produz é suficientemente completo, preciso, justo e transparente para ser considerado jornalismo.
Existe também um interesse crescente em organizações de jornalismo investigativo que operam num modelo sem fins lucrativos, principalmente nos Estados Unidos. O Centro de Reportagem Investigativa [Centre for Investigative Reporting (CIR)], sediado em Berkeley, na Califórnia, foi fundado em 1977 e se apresenta como “a mais antiga organização de jornalismo investigativo sem fins lucrativos do país”. Em 2008, passou por uma expansão e reinventou-se como uma produtora de informação multimídia sob a direção de Robert Rosenthal, ex-editor do Philadelphia Inquirer. O Centro de Integridade Pública [Centre for Public Integrity] foi fundado em 1989. Um participante mais recente na área é a ProPublica, criada em 2008 sob a direção de Paul Steiger, ex-editor administrativo do Wall Street Journal.
Lacuna
As três organizações produzem matérias que são vendidas a jornais, emissoras de televisão e rádio e websites em todos os Estados Unidos. Empreendimentos jornalísticos sem fins lucrativos também vêm pipocando tanto no plano estadual quanto local. São necessários porque ocorreu uma deficiência de mercado em relação à criação de alguns tipos de conteúdo, inclusive de reportagens investigativas, diz Dick Tofel, gerente-geral da ProPublica. O objetivo de sua organização é ajudar a preencher essa lacuna. A ProPublica já ganhou dois prêmios Pulitzer por seu trabalho, que incluiu investigações sobre a crise financeira e a prestação de ajuda de saúde após o furacão Katrina (em parceria com a revista semanal do New York Times). Porém, embora essas três organizações tenham patrocínio garantido para os próximos anos, a viabilidade de patrocínio filantrópico a longo prazo ainda é incerta.
Todas estas organizações trabalham com diferentes tipos de mídia, produzindo versões da mesma matéria para plataformas distintas, o que levou a alguns trabalhos inovadores. A ProPublica colaborou com estudantes de Jornalismo para produzir um vídeo musical chamado The Fracking Song, uma investigação parcial sobre o impacto causado pela extração de óleo de petróleo. O Centro de Reportagem Investigativa expôs algumas falhas na lei sobre segurança contra terremotos nas escolas da Califórnia num projeto chamado On Shaky Ground que resultou numa série de artigos, áudio e vídeos, assim como em mapas interativos e bancos de dados – e um livro para colorir, em cinco línguas, para ajudar a educar as crianças sobre segurança nos terremotos. “Eu dirigi um jornal com 630 pessoas e um orçamento de 75 milhões de dólares e nunca sonhamos em fazer algo como isto”, diz Rosenthal. O projeto também desliza para o ativismo, fornecendo detalhes sobre como contatar autoridades locais. “Você pode apontar a informação para as pessoas, guiá-las a agir”, acrescenta. “Reunir as pessoas em torno da discussão de problemas é algo que a mídia pode fazer cada vez mais.”
A discussão sobre as linhas a serem traçadas entre jornalismo sem fins lucrativos e jornalismo feito por pessoas sem fins lucrativos ainda está em evolução. Mas é evidente que vários tipos de grupos sem fins lucrativos estão começando a preencher a lacuna deixada para trás à medida que encolhem as organizações jornalísticas tradicionais.