Wednesday, 04 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

O abuso ficou por isso mesmo

É grande a legião de fãs de Jorge Kajuru. Como lembra um leitor nesta edição do Observatório, ele diz nas fuças de quem quer que seja tudo o que o torcedor guarda entalado na garganta. Alguns não gostam do jeitão dele, por esse ou aquele motivo. Mas todo mundo reprovou o gesto de vassalagem da TV Bandeirantes, que ofereceu a cabeça do jornalista numa bandeja ao governador de Minas, Aécio Neves. Por quê? Porque Kajuru cumpriu seu dever com o torcedor e criticou a bagunça generalizada na partida do dia 2 de junho entre Brasil e Argentina, pelas eliminatórias da Copa, em Belo Horizonte.

O governador, numa prática que lembrou os tempos de Médici, quando se misturava futebol com política, distribuiu 10 mil ingressos gratuitos a celebridades e correligionários. Os torcedores legítimos não conseguiram entradas para o jogo, o acesso ao Estádio do Mineirão foi complicado, e por pouco não se armou uma bela confusão, que poderia ter prejudicado o Brasil na competição.

Uma das falas de Kajuru, que originaram sua saída:

‘Gente, nunca vi tanto carro de autoridade chegando ao Mineirão. São quase 10 mil convidados do Brasil inteiro, naturalmente com ingresso garantido. E o povo? O povo só teve acesso a 42 mil ingressos, caríssimos.’

Depois do intervalo, Kajuru foi simplesmente substituído por outro apresentador, sem qualquer explicação aos telespectadores da Band.

Ao deixar a emissora, o jornalista distribuiu a seguinte nota:

Aos meus amigos e amigas:

Pela permissão que você me concede de entrar na sua casa, tenho a obrigação de sempre lhe falar a verdade, nada mais que a verdade.

Para quem não assistiu à segunda edição do Esporte Total na última quarta-feira, dia 2, às 20h15, aqui vão os motivos pelos quais estou mais uma vez fora do ar:

1) A Band Minas escolheu o portão do Mineirão como cenário de minha apresentação ao vivo. Desde às 19h30 eu assistia a uma revolta de centenas de torcedores que não puderam comprar ingressos e que não tinham 400 reais para comprar nas mãos de cambistas. Toda a imprensa tinha conhecimento de que somente 42 mil ingressos foram destinados ao grande público. E que mais de 10 mil ingressos-convite estavam nas mãos do governador Aécio Neves e do presidente da CBF, Ricardo Teixeira. Quando eu passei a ver de perto a revolta dos torcedores deficientes físicos que não podiam ter acesso ao portão que, sempre, foi para entrada exclusiva deles e que, naquele jogo Brasil e Argentina, estava destinado a artistas, políticos e seus acompanhantes, aí, sim, comecei a mostrar ao vivo o que estava acontecendo. Fiquei indignado.

2) Primeiro entrei ao vivo no Jornal da Band com o Carlos Nascimento. Relatei os fatos, mostrei tudo! E devolvi para o Nascimento, que fez o seguinte comentário:

‘A gente gosta do Kajuru por isto. Porque ele fala o que ninguém fala e mostra o que ninguém mostra’.

3) Às 20h15, meia hora depois, comecei a apresentar ao vivo o Esporte Total do mesmo lugar. Ali não parava de chegar todo tipo de político e de artista sem ingresso, apenas com o envelope azul do convite do governo de Minas. E ali aumentava, cada vez mais, a revolta das pessoas. Cumpri meu dever jornalístico. Mostrei tudo e entrevistei alguns torcedores. Às 20h30, quando me dirigia a um torcedor na cadeira de rodas, que apontava uma carteirinha e, aos gritos, dizia que era uma lei federal e que ele deveria ter prioridade para entrar, eu disse: ‘Mais um conflito que você vai ver logo depois do primeiro intervalo do Esporte Total, eu volto já!’

Conclusão: Não voltei mais, inventaram uma justificativa de que havia problema técnico, mas depois me avisaram que, por causa do governador Aécio, alguém da diretoria da Band havia descido na redação e mandado me tirar do ar através do Sr. Juca Silveira. Até hoje, continuo fora do ar, esperando por uma decisão da emissora.

Decisão: nesta quarta-feira, dia 9, a direção da Band me demitiu às 11 da manhã. O diretor de Jornalismo, Fernando Mitre, fez a comunicação e disse que saio de portas abertas e que a empresa tem certeza de que um dia ainda vou voltar.

De minha parte saio sem nenhuma mágoa e francamente agradecendo à Band por ter me dado tanta liberdade até o dia dos episódios Casas Bahia e governador Aécio Neves. A estes dois deixo a mensagem de que continuo sendo jornalista, independente e investigativo.

À Band deixo a minha compreensão de que o mundo econômico é assim mesmo: um conflito permanente da liberdade de imprensa, neste Brasil mais chegado à liberdade de empresa e de autoridade. Nesses 30 anos de carreira muitas coisas perdi em função de minha postura mas, felizmente, duas coisas eu não vou perder jamais: a minha dignidade e o meu direito pleno de me indignar com as coisas erradas. Essas duas coisas pertencem a mim. Não estão em contrato e ninguém pode me tirar.

Agora, me dirijo a você, que me assistiu durante esses 14 meses na Band: muito obrigado por tudo e principalmente por dado a mim a certeza de que vale a pena ser digno, continuar transparente e seguir numa relação de mão dupla com você de casa. É isso aí e orgulhosamente volto a ser pobre, feio, mas pelo menos magro. Até a próxima demissão.

Atenção: convido-os a ler a coluna do jornalista Juca Kfouri nesta quinta-feira, dia 10, no jornal Lance!. Não é pela nossa amizade, e sim por se tratar do comentário mais fiel a tudo o que ocorreu. Jorge Kajuru

Foi comovente ver nos sites de futebol a enxurrada de comentários lamentando a perda. ‘Corajoso, imparcial, Kajuru enfrenta os desmandos da CBF com seu grande espírito crítico’, dizia um. ‘De que está valendo o Estatuto do Torcedor? O governo mineiro usou um jogo de futebol para praticar clientelismo! O governador de Minas pôs a perder todo o trabalho da CPI do Futebol com seu voto’, acusava outro. E mais: ‘Valeu, Kajuru, você não vendeu sua dignidade, falou a verdade!’; ‘A Band não sabe o que perdeu ao demitir o melhor, mais completo e corajoso comentarista esportivo do Brasil, perdeu 99,9% do único programa que ainda dava audiência nessa limitada emissora’.

Pensando no futuro?

Escreveu o amigo Juca Kfouri:

Ontem [9/6/2004] selou-se o destino de Jorge Kajuru na TV Bandeirantes. Diante de uma proposta para que se desculpasse das justas críticas que fizera à verdadeira farra deslumbrada que foi a organização do jogo entre Brasil e Argentina – desculpas que deveriam ser dirigidas ao governador tucano de Minas Gerais, Aécio Neves – o jornalista preferiu o caminho de casa.

No que fez bem. Muito bem. Não houve quem visse (e eu não vi) a diferença de tratamento dado ao torcedor comum no Mineirão e às ‘celebridades’, fossem do mundo político ou do artístico ou dos apenas emergentes, e não ficasse indignado, como boa parte da imprensa escrita registrou, fosse neste LANCE!, na Folha de S.Paulo, no Globo etc. (…)

Impossível provar que o governador tenha reclamado de Kajuru à direção da Band, embora sejam vários os depoimentos de jornalistas que atestam procedimentos deste gênero. Talvez, e nem seria a primeira vez, a Band tenha sido mais realista que o rei, o que não é menos criticável. (…)

Aécio Neves negou tudo. Enviou carta ‘educada e magoada’ a Kfouri, dizendo-se injustiçado. ‘E garante não ter nenhuma responsabilidade na saída do jornalista, além de enumerar as melhorias feitas no Mineirão, inclusive as que visam os portadores de deficiência’, escreveu Kfouri, que, embora considerasse a resposta do governador civilizada, manteve as críticas.

A Band fica mais feia ainda na tela se Aécio não pediu a cabeça de Kajuru. Estaria a emissora pensando no futuro, e apostando na já lançada campanha Aécio Presidente?

Estatuto do Torcedor

No âmbito doméstico, essa alegada campanha vem custando caro à imprensa mineira. Mais e mais jornalistas têm denunciado a aliança da mídia do estado com o governo Aécio Neves, pois só dá voz às fontes oficiais e não ouve as outras partes envolvidas, especialmente no episódio da greve dos policiais civis e militares do estado. O Sindicato dos Jornalistas repudiou, em nota oficial, ‘a forma como o governo do estado está cerceando as informações sobre o assunto’. O sindicato até organizou reunião com o Ministério Público, ‘para solicitar a apuração à censura imposta pelo governo estadual aos veículos de comunicação mineiros que culminaram com a demissão de profissionais’.

O plenário do 8º Congresso Estadual de Jornalistas, realizado em Mariana (MG), no início de junho, aprovou a seguinte moção de repúdio à cobertura da greve.

Moção de repúdio aprovada por aclamação em 6 de junho de 2004

Nós, jornalistas profissionais mineiros, reunidos no VIII Congresso Estadual, em Mariana, manifestamos nossa indignação com a qualidade da cobertura que está sendo feita pelos veículos de comunicação sobre o movimento grevista dos policiais militares e civis. Ao contrário da cobertura feita durante a greve da Polícia Militar em 1997, quando diversos profissionais mineiros receberam prêmios nacionais pela forma ética e isenta de levar informação de qualidade a toda população, a atual se comporta como se a ‘Lei da Mordaça’ já tivesse sido institucionalizada em Minas Gerais.

Entendemos que está sendo cometido um inadmissível atentado contra a liberdade de imprensa e contra um dos princípios básicos do jornalismo: sempre dar voz às partes envolvidas. O alinhamento de alguns veículos à posição patronal, no caso o governo Aécio Neves, demonstra mais uma vez que a liberdade de expressão está comprometida em Minas Gerais.

Da mesma forma, manifestamos nossa preocupação com a postura autoritária do governo do estado, que substituiu o diálogo com os trabalhadores em segurança pública pela convocação do Exército, que sabidamente não foi treinado para atuar em situações típicas de área urbana, colocando em risco a população de Belo Horizonte.

A imprensa de Minas tem uma árdua batalha pela frente. A Bandeirantes até agora não se dignou a justificar sua atitude. Kajuru, a primeira vítima externa da suposta campanha de Aécio à presidência, pode enfrentar dificuldades para conseguir outro emprego. Ele mesmo declarou que todas as portas da TV lhe estão fechadas. Uma pena, porque espaço não falta para tantos ‘jornalistas’ esportivos marqueteiros.

E os abusos que Kajuru denunciou? A CBF não cobrou do governo de Minas nem os transtornos causados ao público nem o prejuízo moral. Da CBF ninguém cobrou coisa alguma. Resta esperar que pelo menos algum cidadão prejudicado se arme do Estatuto do Torcedor e corra atrás de seus direitos.