No mesmo dia em que a imprensa brasileira anunciava a morte cerebral da adolescente Eloá Cristina Pimentel – que fora baleada após ser mantida por em cárcere privado durante uma semana por seu ex-namorado – e a autorização de seus familiares para a utilização dos órgãos dela em transplantes, uma outra notícia sobre esse tipo de diagnóstico passou despercebida: ‘Reino Unido lança novas regras para diagnóstico de morte‘ (Folha Online, segunda-feira, 20/10/2008).
O texto é uma tradução de uma reportagem produzida em Londres pela BBC News ‘Doctors get death diagnosis tips‘, publicada no dia anterior. O assunto não teve praticamente repercussão. No Brasil, nem mesmo a BBC Brasil reproduziu a matéria.
As novas regras anunciadas se referem ao documento ‘A code of pratice for the diagnosis and confirmation of death‘, elaborado por 16 médicos para a Academy of Medical Royal Colleges, que congrega 21 faculdades britânicas de medicina.
O novo código não traz nenhuma novidade científica sobre o assunto. Limita-se a estabelecer orientações por meio de um algoritmo para os médicos discernirem as situações em que devem ser aplicados os critérios de definição de morte encefálica – termo preferido na língua portuguesa pelos especialistas em vez de ‘morte cerebral’ – e aquelas em que deve ser considerada a perda irreversível da capacidade cardiorrespiratória.
Controvérsia científica
Curiosamente, o novo documento aponta em suas referências um artigo produzido no Brasil que contesta a segurança dos critérios de morte encefálica vigentes em quase todos os países. Trata-se do estudo ‘Implications of ischemic penumbra for the diagnosis of brain death‘, de neurologista Cícero Galli Coimbra, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), publicado em dezembro de 1999 na Brazilian Journal of Medical and Biological Research. No entanto, apesar de citar esse trabalho, o documento britânico não faz nenhuma referência a nenhuma das diversas críticas científicas aos procedimentos que servem de base para o código ora proposto. O signatário já mencionou algumas dessas pesquisas em 09/09/2008 no artigo ‘O tema espinhoso da morte cerebral‘.
Coimbra e outros pesquisadores propõem que os pacientes em coma devido ao aumento da pressão intracraniana não sejam submetidos ao teste de apnéia e sejam tratados com hipotermia (esfriamento do corpo) para reduzir o inchaço do cérebro e, com isso, tentar a normalização de seu fluxo sanguíneo. Segundo esses especialistas, há vários relatos de sucesso dessa técnica, inclusive com pacientes VIPs. A maioria dos neurocirugiões condena essa proposta, mas a literatura científica médica possui escassas confrontações das duas posições antagônicas.
Além de não apresentar nenhuma contestação ao artigo acima citado, o documento da academia britânica não faz nenhum esclarecimento sobre sua avaliação em relação às questões formuladas durante a fase de consulta pública por especialistas contrários aos critérios de morte encefálica. Um deles é David Hill, anestesiologista aposentado, que em 12/10/2002 formulou no British Medical Journal um sumário questionamento que teve ampla repercussão (‘Diagnosing brain death – Honesty is best policy‘). Outro opositor que enviou questões é o pediatra intensivista Ari Joffe, do Hospital Infantil Stollery, em Alberta, no Canadá, autor do estudo ‘The ethics of donation and transplantation: are definitions of death being distorted for organ transplantation?‘, publicado em 25/11/2007 na revista Philosophy, Ethics, and Humanities in Medicine.
Omissão da imprensa
Na medida em o novo documento cita o artigo de Coimbra e que o algoritmo proposto contém a determinação ‘Estes procedimentos devem ser claramente explicados para parentes, parceiros e profissionais que cuidam dos pacientes’ (pág.23), valeria a pena a imprensa perguntar para a academia se isso implica esclarecer também sobre o fato de haver controvérsia científica sobre o assunto.
Os critérios vigentes de morte encefálica se baseiam em diretrizes estabelecidas há 40 anos, desde a publicação, no Journal of the American Medical Association (Jama), em agosto de 1968, do relatório ‘A definition of irreversible coma‘. Essa publicação substituiu, para os casos de coma, o critério de cessação da atividade cardíaca pelo de ausência de atividade cerebral, que passou a ser adotado inclusive para estabelecer a possibilidade de remoção de órgãos para transplantes.
No âmbito da comunidade científica, parece não haver nenhuma previsão de debate sobre esse tema. O encontro ‘A gift for life: Considerations on organ donation‘, previsto para 6 a 8 de novembro em Roma, não prevê nada disso em sua programação. O evento é promovido pela Pontifícia Academia para a Vida, Federação Internacional de Associações Católicas e Centro Nacional de Transplantes da Itália.
Um dos principais motivos da omissão da imprensa em abordar esse tema é o risco de prejudicar as doações de órgãos para transplantes, cujas filas de espera são enormes. E quando o aborda, geralmente o faz conforme a predominante tradição declaratória do jornalismo científico, com a ausência de opiniões contrárias, que passa para o público a imagem de uma ciência isenta de contradições. Em outras palavras, desrespeitando os preceitos básicos do jornalismo, ora por falta de preparo da maioria dos repórteres para lidar com temas científicos complexos, ora por falta de vontade.
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Jornalista especializado em ciência e meio ambiente, editor do blog Laudas Críticas