Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

O ano que não vai terminar

Tomo emprestado de Zuenir Ventura o título do seu 1968, o Ano Que não Acabou para refletir sobre o estranho encurtamento e a obrigatória extensão deste 2005. O anterior, 2004, foi até maio, este vai parecer um biênio, fadado a desdobrar-se até o final de 2006. No mínimo.

As periodizações cronológicas e históricas são meras formalidades, provam-no o século 19 esticado languidamente até 1918. Prematuro garantir quando terminou o século 20 – encerrou-se junto com a queda do Muro de Berlim em 9 de novembro de 1989? Ou foi empurrado até o 11 de setembro de 2001, quando ruíram as torres do World Trade Center?

Os produtores do ‘vídeo da propina’ não poderiam imaginar que aquele inesquecível momento do neo-realismo brasileiro teria tamanha importância. Os três mil reais rapidamente empalmados e embolsados por um alto funcionário dos Correios introduziram no repertório político nacional o efeito tsunami, a tragédia agigantada.

O colossal vagalhão que no Natal passado varreu o sudoeste da Ásia até as costas da África Oriental criou novo padrão letal. A força da catástrofe, pela primeira vez presenciada senão ao vivo mas em cores por grande parte da humanidade, trouxe de volta o paradigma do dilúvio e funcionou como uma moderna metáfora do Apocalipse.

Regras viciadas

Nosso tsunami político começou como uma crise entre aliados (cúmplices, na verdade) no projeto de poder que sobrou dos sonhos do Partido dos Trabalhadores. E, como num boliche, vem derrubando sucessivamente todos os pinos até revelar a extensão dos escombros: foram desnudados os detentores do idealismo e da ética, os messiânicos cheios de pudor converteram-se em pragmáticos despudorados e, nesta sucessão de metamorfoses, fica evidente que a nossa sociedade já não conseguirá se equilibrar em cima de tantas mentiras. As rupturas são inevitáveis.

Apesar da proliferação das facções de esquerda, nenhuma delas é verdadeiramente determinista: todos apostam em milagres porque ninguém está disposto a abdicar das vantagens e delírios. Sem concessões não há chance de consenso – é acaciano, óbvio, mas enquanto ficarmos distantes das obviedades será impossível alcançar o patamar das sutilezas.

Carecemos de atletas verdadeiros, esta é outra verdade. Sob a égide da poderosa e penetrante mediocridade apenas saltitamos, no mais das vezes escorregamos. O que faz a diferença é um mínimo de altruísmo. Substância que se evaporou há algumas décadas da cena nacional.

A solução dificilmente virá das próximas eleições porque as regras do jogo estão viciadas e os jogadores nivelados pela falta de grandeza. A queda de braço em outubro de 2006 servirá apenas como distração, briga de galos.

Mola única

As incríveis absolvições do deputado federal Romeu Queiroz (PTB-MG) e do deputado estadual José Guimarães (PT-CE), aquele cujo assessor fez das cuecas a bandeira da corrupção, mostram que as reformas política e eleitoral jamais conseguirão converter cafajestes em cavalheiros, como disse a historiadora-analista Lúcia Hippólito.

O descrédito que envolve o Legislativo desde fevereiro passado, quando a Câmara escolheu Severino Cavalcanti para presidi-la, não aconteceu por acaso, é fruto de uma infecção ancestral, estrutural e entranhada, que vem do Pacote de Abril imposto pela ditadura militar. Nem as solenes togas da nossa suprema corte conseguem disfarçar a generalizada desconfiança do povo com as suas instituições.

Está faltando alguém para dizer que esta não é uma crise política com o as anteriores. É uma das mais contundentes e perturbadoras manifestações do drama nacional. Não será detida pelas festas natalinas, o verão, as musas ou o Carnaval. Dramas não prestam atenção ao calendário.

É por isso que este ano vai projetar-se além de 31 de dezembro e muito provavelmente além do seguinte. A percepção de que nada vai mudar é a única mola capaz de acionar mudanças verdadeiras. O problema é que ela está demorando a funcionar.