Menos mal que o confronto envolvendo o presidente do Brasil, o jornalista americano Larry Rohter e o jornal The New York Times, por conta de uma reportagem mal formulada ou mal interpretada, afirmando que o nosso chefe da nação é simpático ao álcool, teve um desfecho com jeito de final feliz.
Como a maioria dos setores jornalísticos, não consegui compreender muito bem as reais motivações que levaram esse caso a tamanha dimensão e repercussão. A meu ver, trata-se de mais uma das matérias que, infelizmente, ainda circulam pela imprensa dizendo inverdades, ou meias verdades, a respeito de determinado assunto, sem um maior aprofundamento e sem uma busca ostensiva pelas fontes. Continuo não compreendendo a sua dimensão, mas acredito que, após o incidente, bons frutos poderiam ser colhidos a fim de evitarmos que episódios como esse tornem a se repetir, maculando ainda mais a imagem do Brasil no exterior.
Alguns pontos relacionados ao processo de produção da notícia, edição, difusão e recepção, são significativos e poderão subsidiar futuras discussões acerca da pragmática jornalística em tempos de internet, para a qual a dinâmica dos acontecimentos gira em torno de velocidade e ampla difusão. Apesar de não ser esse o enfoque preponderante do presente artigo.
Acredito que qualquer análise, sob o ponto de vista da imprensa, deveria visualizar essa questão a partir de três eixos: o primeiro seria a denúncia em si; o segundo, a repercussão da matéria em âmbito mundial; o terceiro, a postura da presidência da República. E é sobre o terceiro item, acredito, estar concentrado o grande x da questão, em outras palavras, o grave erro do governo brasileiro – estou me referindo ao presidente, em não ter se preservado diante desse caso.
Em meio à crise
Em tempos de democracia e liberdade de expressão parece incompreensível que o presidente de um país de tamanha importância no cenário mundial e eleito pela grande maioria da população seja capaz de redirecionar suas atenções para a arena midiática a fim de bater de frente com um jornalista estrangeiro que, supomos, não conheça muito bem a realidade brasileira. Somos o país da cachaça, e daí? Como somos do futebol, do carnaval, da Embraer, da Petrobras… . Ademais, há muito que a nossa popularíssima e secular ‘cachaça’ ou ‘caninha’ se tornou um dos ícones da cultura nacional e, para nosso orgulho, invadiu as prateleiras de grandes restaurantes internacionais.
Sob essa perspectiva, a matéria de Larry Rohter, apesar de inconsistente, é extremamente oportuna num momento em que o Brasil se projeta econômica, política e culturalmente no exterior e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva figura entre as personalidades mundiais, eleito recentemente pela revista americana Time.
A afirmação do repórter de que a nação estaria preocupada porque o presidente bebe trata-se, portanto, de uma mentira, e todos aqueles que temos conhecimento sobre os princípios do jornalismo sabemos muito bem que ‘mentira’ jamais pode se transformar em notícia, porque ‘notícia’ é o relato de um fato real, com todas as suas implicações, os seus desdobramentos. A verdade é que sem verdade não há jornalismo. Sendo assim, podemos considerar que a matéria não existe e, se ela não existe, não há por que combatê-la. E ponto final!
Por outro lado, falar que o presidente do Brasil bebe pode ser tão insignificante quanto uma matéria escrita por um jornalista americano, justo no momento em que os EUA vivenciam uma das maiores crises de toda a sua história, em conseqüência dessa vergonha mundial de ter invadido o Iraque, devastado a cultura daquele país, bombardeado mesquitas e torturado presos em pleno século 21.
Tapa de luva
A reação do Palácio do Planalto em cancelar o visto do repórter Larry Rohter por meio de uma medida arbitrária resgatada do regime militar não poderia ser mais indigesta e com certeza ficará atravessada na garganta de nós, brasileiros, ainda por muito tempo. A reação a esse fato se torna ainda mais grave quando o presidente vai novamente para a tribuna midiática, desta vez para a revista IstoÉ, declarar que o presidente do Brasil ‘não é alcoólatra’.
Diante da sucessão de erros cometidos em torno desse episódio uma pergunta não quer calar, senhor presidente. Onde estava a sua assessoria de imprensa? Cujo papel é justamente esse: impedir que questões dessa natureza atinjam tamanha dimensão.
Se a assessoria de imprensa falhou ou, se não foi ouvida, em ambos os casos houve perdas irreparáveis para o jornalismo, considerando que o papel da AI é o de intermediar as relações entre a instituição e os órgãos de imprensa; em linguagem acadêmica, entre mídia e poder. E o que presenciamos no desenrolar desse fato foi justamente o contrário; uma avalanche de declarações contrapostas surgidas dos mais diversos setores, principalmente político e judiciário, não sabemos se para impedir que a assessoria exercesse o papel que lhe é de direito – assim nos ensinam os conteúdos programáticos dos cursos de Jornalismo, ou para consertar um erro cometido pela própria assessoria de imprensa. A verdade é que houve uma inversão de papéis, aliás, prática que tem se tornado cada vez mais comum entre a corte governamental.
Em vez desse tipo de reação o governo brasileiro poderia ter agido de forma mais estratégica e menos ofensiva, buscando apoio entre os meios acadêmicos e órgãos representativos, como Federação Nacional dos Jornalistas, Associação Internacional de Jornalistas e, a partir daí, dar um tapa de luva no adversário – acho que nem isso ele merecia –, colocando em xeque a sua falta de profissionalismo e total desrespeito aos princípios do discurso jornalístico em tempos de informação globalizada, quando pequenas falhas podem se transformar em grandes acontecimentos; bem como do jornal NYT, por publicar uma matéria de impacto sem maior consistência. Acho que o Planalto perdeu uma grande chance de deitar-se em berço esplêndido e ver o circo pegar fogo.
Lição ao governo
Em vez de retratar-se, o governo brasileiro acabou contribuindo para que Larry Rohter atingisse plenamente seus objetivos. Bem ou mal, a sua reportagem, mesmo que infundada, conseguiu provocar um conflito – matéria-prima do jornalismo contemporâneo (se tomarmos por base as idéias do professor Carlos Chaparro, da ECA/USP), imprimir sua marca no cenário político, comover os órgãos de imprensa nacionais e internacionais e, ainda de quebra, se transformar de vilão em herói, como nos bons tempos de Hollywood.
Se todos erraram – o jornalista, por ter construído uma matéria inconsistente; o jornal, por ter publicado a matéria, o presidente, por ter subestimado a sua condição de chefe de Estado e maximizado o teor da reportagem, e a assessoria de imprensa, por não ter impedido que esse caso atingisse a opinião pública –, seria bom que o Palácio do Planalto revisasse os seus conceitos a fim de evitar que o presidente tenha que retornar sucessivas vezes à arena do espetáculo, provar que ele não é Seu Creyson, ou que ele não é o professor Pasqualula, personagem criado recentemente pelo Casseta & Planeta para apontar erros de português do presidente em discursos de improviso, proferidos mundo afora.
Espera-se que o duelo Lula x NYT sirva de lição ao governo para que a banalização do discurso presidencial não acabe por resgatar ao Brasil a velha imagem de uma Republiqueta de Bananas que, convenhamos, Carmem Miranda soube representar muito bem.
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Mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP e professora do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Roraima