‘Quando as pessoas deixam de acreditar em alguma coisa, o risco não é de que passem a acreditar em nada, e sim, de que acreditem em qualquer coisa.’ A reflexão de G.K. Chesterton (1874-1936), escritor e poeta, pode servir para lançar alguma luz sobre o estado atual da nossa comunicação pública. Com esta expressão, designamos não apenas a mídia (o complexo de jornais, revistas, rádios, TVs e internet), mas também a comunicação oral e quotidiana nas instituições que, bem ou mal, repercutem os temas dominantes no espaço público.
Normalmente, o aspecto da comunicação oral é deixado de lado pela observação crítica da mídia. Primeiro porque, sem a permanência da escrita, o que se diz é fugaz, não se presta à comprovação; segundo porque ali é o lugar próprio ao boato que, como bem se sabe, é um conjunto de ‘bolhas’ desinformativas, infladas por maledicência, temores e interesses às vezes inconfessáveis. La Bruyère, famoso moralista francês do século 17, dizia que ‘o contrário dos boatos que correm costuma ser a verdade’.
Por que, então, trazer o velho boato ao moderno tópico da mídia?
Uma hipótese viável como resposta traz à baila a frase de Chesterton. É que, em nossa plena modernidade, os públicos firmaram com a imprensa informativa um pacto de credibilidade. A ela caberia garantir não apenas a livre expressão, mas também a publicização da verdade oculta nos desvãos do Poder. Não uma publicidade qualquer, e sim, uma versão abalizada sobre os arcana imperii, isto é, os segredos do mando. A imprensa seria, portanto, a antítese do que La Bruyère chamava de rumeur, o boato.
‘Qualquer coisa’
Por isso, a imprensa se investe modernamente do direito moral de narrar, inerente a toda e qualquer testemunha de um fato. Testemunho, em grego clássico, é histor – daí, história. Acreditamos numa história porque foi testemunhada, senão diretamente ao menos por uma mediação confiável, a cargo do jornalismo.
Acontece que, de algum modo, o pacto de credibilidade tem sido abalado pelo funcionamento da mídia, palavra algo abstrusa, mas que vale como conceito da ampliação da velha imprensa por meio de novas tecnologias da informação, entretenimento e mercado. Não acreditamos necessariamente naquilo que nos diverte ou nos faz rir. Simplesmente, rimos.
Aí mora o risco atual da mídia junto aos seus públicos. Se nela deixamos de acreditar, poderemos, como diz Chesterton, acreditar em qualquer coisa. ‘Qualquer’, adjetivo e pronome indefinidos, implica neutralidade quanto às qualificações de uma coisa ou de alguém. O ‘qualquer’ é sem atributos nem valores. Quando aceitamos ‘qualquer coisa’ – pouco importa o que nos apareça –, estamos dentro da lógica do indefinido.
Redes sociais
É assim com a informação sem critérios coletivos consensuais para selecionarmos a coisa em que acreditamos. É o que pode acontecer quando perdemos a confiança na mediação histórica da imprensa. Muita tinta e muitos bytes já se gastaram em análises dessa crise de credibilidade, que atinge desde as referências mundiais (o New York Times, por exemplo) até as regionais.
E não se trata apenas de texto: as suposições quanto à verdade referencial da própria imagem costumam ser abaladas pelas tecnologias digitais. Os diagnósticos neste sentido tornam-se correntes. Assim é que o artista e pesquisador britânico David Hockney, em entrevista ao jornal The Daily Telegraph, sustentou que a fotografia pode estar ‘perdendo o crédito como espelho da verdade’. Citando uma contrafação do Daily Mirror (o tabloide havia publicado na capa uma foto em que um suposto soldado inglês urinava no rosto de um prisioneiro iraquiano, mas depois se descobriu que era uma montagem), ele afirmou: ‘Nós não sabemos mais como olhar para uma foto’. O coeficiente de inverdade da fotografia aumenta com a imagem digital, a tal ponto que ‘daqui a algum tempo, vai ser impossível acreditar no que estamos vendo nos jornais’.
O fenômeno é mundial – não é aqui o caso de ser exaustivo quanto a exemplos. Trata-se, sim, de olhar ao redor, na paisagem nacional, e tentar ver o que está acontecendo na ‘coligação’ implícita da mídia corporativa com as chamadas redes sociais na internet. Eticamente, é parecido com certas coligações partidárias: vale tudo.
Discussão pública
A diferença é que a coligação midiática ocorre sem que os envolvidos disso se deem grande conta. Fala-se de ‘mídias complementares’ sem perceber que as regras de produção de veracidade valem apenas para um campo técnico (o do jornalismo) com limites traçados, ao longo dos tempos, por sutis negociações discursivas entre os sistemas profissionais e seus públicos. Sem esse jogo semiótico, entram em cena a mentira e o boato.
O fenômeno recrudesceu com a última campanha eleitoral para a presidência da República. Ao tomar partido (o que não é um horror, afinal os jornais podem espelhar as preferências das frações de classe social que os sustentam), a mídia hegemônica confundiu frequentemente fato com opinião e boato. Assimilou acriticamente os ‘rumores’ da rede eletrônica, e esta, por sua vez, perdeu limites e freios. Nela, qualquer montagem, qualquer mentira pode ser respaldada por milhares de ‘acessos’.
Obviamente, pode-se fazer o mesmo com versões contrárias. Mas não se consegue instaurar o contraditório da democracia porque o boato predomina pela força sedutora do imaginário, é mais ‘virótico’ do que a comunicação do fato.
Ora, o socius é cimentado pela confiança. Sem isto não se governa, nem há vida social inteligente. Talvez se deva refletir com mais seriedade sobre a sugestões correntes quanto a uma discussão pública e responsável sobre o funcionamento da nossa mídia.
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Jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro