Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O bocejo do jornalismo

Os jornais indesviavelmente sempre trouxeram aquele turbilhão, quase pré-coerente, de notícias largadas na página, muitas vezes sem nexo que as ligasse – nexo que era dado, quase transgenicamente, pelo vocábulo no alto da página a retrancar a qual editoria aquele material pertencia. Era e sempre é nesse ponto que os matutinos perdiam e perdem a corrida para as revistas, pródigas em darem amarrilho, hierarquia e profundidade ao material largado durante a semana nas manchetes.

Era essa profundidade, quase sempre decretada como o nec plus ultra do jornalismo, que a Folha de S.Paulo tentava buscar ao criar uma elite em sua redação: a dos repórteres especiais. Derrisoriamente, na Folha, os repórteres especiais ganharam o apelido, entre os demais jornalistas da redação, de funcionários da ‘gráfica do Senado’. Ou seja: ganhavam muito e trabalhavam pouco. Parcialmente mentira: ganhavam bem, sim, mas traziam nas costas o peso de dar a profundidade e o diferencial a ser trazido pelas revistas no final de semana.

Repórteres especiais passavam os dias telefonando. Eram deslocados com freqüência ao exterior. Tinham verba para almoçar com fontes em restaurantes cujas contas eram notórias coleções de zeros. E, na hora que estouravam as grandes histórias, cabia a eles o papel de tornar o papel do jornal jornalisticamente mais válido.

Poderiam ser esses repórteres nada especialistas. Mas, todos, guardavam uma sagaz capacidade de aprender e dominar rapidamente assuntos com os quais jamais haviam bulido. Não eram as ‘classes esclarecidas’: eram as ‘classes esclarecíveis’, na frase de Orígenes Lessa.

Corrida pela notícia 

Os cortes anunciados pela Folha de S.Paulo na semana passada podaram justamente essa, digamos, paidéia maçônica que era a casta dos repórteres especiais.

Vejamos: uma das faces mais atraentes da Folha é sua campanha pelo didatismo, que tanta paúra metia nos desavisados e tanta clareza trouxe para o jornal. Foi criada e tocada com paixão adâmica pelo repórter especial Luiz Carversan, um dos agora desligados. Aliás, entre estes, também simplesmente o melhor repórter de saúde que o país tem: Aureliano Abel Biancarelli.

Talvez nem mesmo a direção da Folha saiba que, nessas demissões, desfibrou a alma do jornal. Lembremos que os maiores furos da história do diário – como as matérias da Serra do Cachimbo (Elvira Lobato), dos casos Senhor X (Fernando Rodrigues) e PC Farias ( Mário Magalhães) – foram dados por essa gente a quem a Folha confere a tarefa de correr por fora no dramático sweepstake que é a corrida por notícias.

Os leitores somem

O maior esforço de toda essa equipe completa 10 anos no próximo dia 20 de agosto, data em que a Folha lançou o seu Atlas Folha: e o jornal atingiria a marca de mais de 1 milhão de exemplares vendidos aos domingos.

Para que o jornal não fosse apenas mais um produto ao lado do atlas, coube a nós, repórteres especiais, produzir história inimagináveis e inimaginadas – aquilo que os repórteres norte-americanos chamam de ‘cutting-edge stories’. Como, por exemplo: contar, naquele 20 de agosto, como um capitão da PM paulista matara toda a sua família para depois ir dirigir a equipe de treinamento na selva do grupo terrorista peruano Sendero Luminoso.

As demissões da semana passada não representam apenas a coroação de uma prática que se torna intransitiva: revela a continua inflação em que está a qualidade do jornalismo. Há dez anos tínhamos bons brindes e, numa talvez autoconsentida consciência de culpa, boas histórias para dizer que não se comprava apenas um atlas. Hoje não temos mais atlas.

Os bons repórteres vão escasseando. E os leitores sumindo. Eis a fórmula para o bocejo do jornalismo.

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Ex-repórter especial da Folha, ganhador do Grande Prêmio Folha de Jornalismo 1993 (com Fernando Rodrigues) e ex-correspondente do jornal nos EUA