Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O ‘cansaço’ da imprensa

Aparentemente o ‘Cansei’ não empolgou os analistas políticos dos grandes jornais. Talvez por faltar nome de peso que dê lustro político ou acadêmico ao movimento, talvez pela percepção de seu fôlego curto, a imprensa não embarcou de mala e cuia no ‘agito’ promovido por João Dória Jr. Estava muito claro seu caráter direitista e elitista. Melhor continuar amplificando a insatisfação de parcela da classe média de forma sofisticada. Continuar editando a sensação de caos à espera de algo mais orgânico.

Não basta, portanto, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso lembrar que ‘em uma sociedade, há manifestações de todo tipo. Tem `Cansei´, tem abaixo-não-sei-quem. O PT era mestre em fazer abaixo FHC’. É verdade. Mas o que o ‘príncipe das editorias de política’ oculta é a diferença de apoio logístico. Contra ele, não se articularam associações como a Abert, Febraban e Fiesp. Pelo contrário, salvo falha imperdoável de memória, esse foi seu núcleo de apoio: mídia, capital financeiro e empresariado paulista.

Menor serventia tem a afirmação acaciana do governador de Minas Gerais, Aécio Neves (PSDB), de que o movimento não pode ser considerado golpista porque vivemos numa democracia. Isso soa pueril para um poder midiático que deixou de se configurar como mediador para se apresentar como incorporação acabada da opinião pública. O único partido de direita com projeto definido e estratégia de longo prazo. O que mais reúne, sob o surrado ‘discurso da competência’, os melhores ‘especialistas’ em cidadania e interesse público. A ele cabe estabelecer o metro do ‘cansaço’.

O bom e velho corporativismo

Os ‘cansados’ devem estar exaustos. Não deve ser fácil para os daslupianos desvairados dos Jardins e os inocentes do Leblon ouvir o alarido da mobilidade social patrocinada pelo governo Lula. Sem dúvida ,é insuportável ver um ‘outro de classe’ interromper oito anos de pilhagem neoliberal e colocar o país em rota de crescimento sustentável, com o emprego formal batendo recordes sucessivos. Some-se a isso um inegável processo redistributivo e o que temos? Nada que se encaixe nos arrazoados de Miriam Leitão ou Carlos Alberto Sardenberg.

Não falemos em facciosimo ou ódio de classe, pois isso seria uma indelicadeza. O que move o ‘Cansei’ é, de fato, fadiga. Afinal, foi em uma sociedade que concebeu cidadania como privilégio de classe que seus integrantes desenvolveram um singular ‘senso ético’. O que escandaliza tão respeitáveis senhores e senhoras da paulicéia desvairada é perceber que a choldra já não cabe mais em velhas relações de hierarquia, mando e obediência. Agora decidiram ser sujeitos. Vê se pode? Contra essa ‘anomia’ se batem Dora Kramer, Clóvis Rossi, Merval Pereira e outros valorosos quadros do Partido Mídia.

Quando Luiz Flávio Borges d´Urso, presidente da OAB-SP, diz que os que criticam o ‘Movimento Cívico pelo Direito dos Brasileiros’ são movidos por má-fé ou desinformação, está coberto de razão. Há muito se perdeu a fé em uma estrutura jurídica que, não definindo direitos, garante privilégios. O senso comum já desmascarou o sistema legal de outorgas ao repetir incessantemente que ‘a justiça só existe para os ricos’. Pena que seu colega da seção carioca da Ordem, o advogado Wadih Damous, tenha sido categórico: ‘O `Cansei´ tem fundo golpista’. Será que nem o bom e velho corporativismo funciona mais, dr.Luiz Flávio? Assim, fica difícil ‘cansar’ nas primeiras páginas.

O ódio classista

Se há ineficiência de gestão em algumas poucas áreas – e o setor aéreo é uma delas –, o que incomoda a parcela protofascista da classe média é a popularização do acesso ao avião. Os saguões estão cheios de caras novas, gente que não fazia parte dos velhos companheiros de check in. E, quer queiram ou não, certo estava o ministro Mantega quando definiu o atraso de vôos como reflexo do preço do sucesso e da prosperidade da economia brasileira. A relação disso com o acidente do Airbus A320 da TAM é da ordem do vale-tudo do imaginário golpista. Uma caixa-preta que guarda as mesmas falas e gráficos há mais de cinco décadas. Basta consultar editoriais antigos para perceber que, mudando nomes e circunstâncias, a narrativa é a mesma.

Vale lembrar o que um dos articuladores do movimento, o presidente da Philips do Brasil, Paulo Zottolo, disse à Folha de S. Paulo: ‘Não acho que a situação do Brasil esteja assim por causa do governo do PT. O Brasil está mal por várias outras histórias. Eu não sou petista, mas tem várias atitudes do PT que eu aplaudo, como tem outras que eu absolutamente não aplaudo, assim como tem várias atitudes do PSDB como oposição que eu rejeito’. É de se perguntar então: está cansado de quê? Quais são as ‘várias outras histórias’? É bom detalhá-las porque muitas delas mostram uma estrutura social autoritária em que os ‘cansados’ maximizaram seus ganhos e se encobriram de duvidosas distinções honoríficas.

Em suma, as vivandeiras alvoroçadas devem ter uma coisa em mente: não é mais possível ‘ir aos bivaques e bulir com os granadeiros’. O cenário internacional é totalmente distinto do existente em 1964. A articulação dos movimentos sociais não depende do Estado e a correlação de forças mudou. Resta a mídia partidarizada, mas o golpe branco tem poucas chances de êxito. Editoriais como o do Globo, em 2 de abril de 1964, são peças de um antiquário macabro. O trecho abaixo vale apenas como exemplo de uma mentalidade política que permanece intacta nos setores que se julgam ‘esclarecidos’ e ‘informados’. É um texto sonhado por poucos, mas que não voltará a ser escrito.

‘Este não foi um movimento partidário. Dele participaram todos os setores conscientes da vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das manobras presidenciais. Aliaram-se os mais ilustres líderes políticos, os mais respeitados governadores, com o mesmo intuito redentor que animou as Forças Armadas. Era a sorte da democracia no Brasil que estava em jogo. A esses líderes civis devemos, igualmente, externar a gratidão de nosso povo.’

Qualquer semelhança não é mera coincidência. Quando o ódio classista se disfarça de indignação cívica todas as farsas são permitidas.

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Em tempo: Após a conclusão deste artigo, leio na Folha de S.Paulo de domingo (5/8) matéria sobre a manifestação de protesto contra o governo, ocorrida na véspera, na capital paulista. Reproduzo um trecho:

‘Na passeata de ontem, os jornalistas disputavam a desempregada Jessica Verônica Aquino Nascimento, 25, raríssima negra presente. Segundo ela, seus `irmãos de raça e os pobres em geral, infelizmente, ainda são muito ignorantes´.

Na frente do QG do Segundo Exército [sic], depois de andar 3 km, o pessoal ainda teve forças para gritar `Acorda, Milico! Acorda Milico!´. Daí, surpresa, emendaram-se clássicos da canção de protesto, como `Apesar de Você´, de Chico Buarque, e `Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores´, de Vandré.’

Assim, até a mídia ridiculariza. A falta de senso do ridículo não é um bom túnel do tempo.

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Professor titular de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro, RJ