É possível que no momento em que vocês comecem a ler este artigo, ele já esteja obsoleto. A crise, que no Brasil quer dizer a luta política, eleitoral, é tão rápida, que mal começamos a escrever sobre ela já novos dados e informações surgem, e de tal maneira, que mudam o corpo e o espectro do que víamos antes. ‘O tempo não pára’, como cantava Cazuza, mas não só, porque agora e nesses últimos dias o tempo é um embusteiro, a cada instante a nos enganar com novas armadilhas, a nos revelar uma face e esconder outra. O tempo não pára de ser embusteiro.
Há pouco, queremos dizer, até sexta-feira (17/3), o tempo na imprensa era a intromissão – indevida, para melhor reforço – do Judiciário sobre o Legislativo. Na véspera, o depoimento do caseiro Francenildo dos Santos Costa na ‘CPI do fim do mundo’, aquela que acerta todas as contas, todos os pecados no dia do juízo, pois sendo CPI dos Bingos joga a sorte de todos os pecadores no Juízo Final; na véspera, o depoimento do caseiro a virtuosos republicanos fora interrompido por uma decisão do Supremo Tribunal Federal. Este era o assunto, esta era a indignação que corria a imprensa de Sul a Sudeste do país, e por extensão, portanto, do Norte ao Nordeste apêndice do Brasil. Anunciava a Folha de S.Paulo: ‘STF atende PT e cala caseiro’. Completava O Globo: ‘Mordaça para proteger Palocci’. E continuava O Estado de S.Paulo: ‘Supremo pára CPI, abre crise e Lula diz que Palocci não sai’.
Poucos, para não dizer nenhum dos jornais, trazia a público as razões do STF para suspender o depoimento na CPI contra o Ministro Palocci. Alceu Nader, neste Observatório, lembrou e sublinhou algumas delas, quando transcreveu a decisão :
‘Nenhum parlamentar pode, sem descumprimento de dever de ofício, consentir no desvirtuamento do propósito que haja norteado a criação de CPI e na conseqüente ineficácia de suas atividades… Noutras palavras, seu depoimento (do caseiro) em nada ajudaria a esclarecer ou provar a suposição de que seria dinheiro oriundo de casas de jogo! E é o que se presume à condição cultural e ao próprio trabalho que a testemunha desempenharia no local apontado.’ E com isto, o Ministro relator do Supremo Tribunal Federal apenas disse: 1. A CPI dos Bingos deve investigar o Bingo, o jogo ilegal; 2. O caseiro da mansão em Brasília não era bem o tesoureiro do Bingo. Coisa tão óbvia, acreditem, ninguém viu.
Uma das mais cívicas e patrióticas colunistas da Folha, que certa vez escrevera que o maior legado da Albânia para o mundo civilizado teriam sido massas de famintos e de piolhos, preferiu ver um jogo sujo na interrupção do depoimento do caseiro Francenildo:
‘Como empregado da bela casa alugada em Brasília pela ‘república de Ribeirão Preto’ (do ‘chefe’ Palocci), Nildo ouvia e via muita coisa, sabia de reuniões ortodoxas e heterodoxas. Relata jogos, malas de dinheiro, as chegadas do ministro num Peugeot prata de vidro fumê e como ele pedia para apagar as luzes de fora para não ser visto -desmascarado?
Nildo sabia onde estava se metendo: ‘Eu não sou nada perto dele [Palocci]. Mas ele está mentindo’. E sua versão tem início, meio, fim e credibilidade, seja ele um achado ou não da oposição. Contra fatos, não há argumentos’.
Fatos… vísceras ou acontecimentos?
Para um caseiro, que até prova em contrário é um empregado que cuida dos exteriores e das cercanias da casa, Francenildo é um excelente e insuperável espião. Como poucos. Como os raros e impossíveis. Ele sabia das reuniões ortodoxas e heterodoxas – como ele as distinguia? Palocci nu a pular na sala seria a distinção? Mais: via malas, que para ele se abriam nos jardins, na garagem, no quintal, no terraço, e se estivesse escuro, o Ministro lhe gritava: ‘Nildo, aqui temos dinheiro. Veja’. Ao que Nildo lhe respondia: ‘Chefe, quanto dinheiro! De onde vem tanta riqueza?’ E Palocci: ‘Do bingo, do bingo, Nildo. Guarda esta informação, que poderás usá-la contra mim’. ‘Onde, chefe?’ E Palocci, a sorrir: ‘Na CPI, homem. Nas colunas dos jornais brasileiros, onde aparecerás como autor de versões de início, meio e fim e credibilidade. Não te esqueças’.
E se as coisas não ocorreram assim, podemos crer que Fracenildo seria um caseiro de um gênero fantástico, pois também exercia as funções de cozinheiro, garçom, barman, camareiro, repórter, fotógrafo, cameraman, contador, auditor da Receita Federal, fiscal de alcova, confessor de igreja, ou, mais precisa e modestamente, em resumo, as funções de testemunha poderosa, ocular e invisível da história. Aquela, que é um achado para os partidos fora do poder.
No outro dia
No fim da tarde de sábado (18/3), o tempo, que não pára, voltou a mudar. Descobriu-se que a poderosa testemunha, o senhor múltiplo de espionagem, recebera depósitos em uma conta que alcançam o valor de R$ 38.860,00. Furo de reportagem da revista Época. Segundo os repórteres, no começo do ano o caseiro possuía apenas R$ 24,76 na conta. Depois de sucessivos depósitos e saques, no dia do depoimento na CPI estava com R$ 19.662,35. Então veio rápido a explicação do advogado do caseiro: os depósitos seriam, na verdade, 25 mil reais, dos quais o caseiro teria sacado 15 mil, para, arrependido, devolver 13 mil à conta. A fonte dos depósitos seria de um pai distante, constrangido e envergonhado, que assim se redimia frente ao filho que não reconhecera, porque o caseiro veio de uma relação fora do casamento.
Então a boa imprensa, tão boa e melhor em desmontar mentiras e versões petistas, primeiro se pôs incrédula. Dos depósitos. E como não acreditava no que via, perdeu o ânimo de perseguição investigatória. Aceitou como natural a coincidência de depósitos e depoimento do caseiro, e passou a ver um fato muito mais estarrecedor.
Rápido parêntese. Aqui deve ser mencionado que em relação ao governo Lula os grandes jornais e os mais honrados partidos da oposição, PFL e PSDB, auxiliados pelos acima de qualquer suspeita PPS e PSOL, estão cada vez mais estarrecidos. O termômetro do susto e da fúria são os números de Lula nas pesquisas eleitorais. Pela última, o presidente ganharia as eleições já no primeiro turno. Parêntese fechado.
Então os partidos, de hipocrisia e terror, depois da intromissão do Judiciário no Congresso, ‘um fato nuca visto desde a ditadura’, conforme as palavras do abismado senador Antonio Carlos Magalhães, então os partidos, de mágoa e desespero, se depararam com essa violência: a quebra do sigilo bancário do caseiro, de uma testemunha, de um espião fundamental no processo contra o governo Lula. Escândalo! E o caseiro, um pequeno Davi, vítima dessa luta desigual, declarou à Folha de S.Paulo: ‘Mexeram nas minhas contas. O que posso esperar mais?’. Sim, o que mais pode esperar um homem íntegro, porque se mostra inteiro, um autêntico homem do povo à margem da esperança dos despossuídos, que se presta ao papel de informante; sim, o que mais pode esperar?
Uma vista desarmada a mirar bem as fotos do caseiro nas entrevistas e depoimentos, uma leitura atenta da sua paisagem em torno perceberá o que ele pode esperar. Há de chegar um momento em que o senhor de terno a seu lado abrirá uma grande caixa, pegará o corpo da testemunha nas costas e o largará, encolhido, na caixa que será fechada. Imóvel e mudo permanecerá até o próximo show. Este é o destino e futuro de todo boneco de ventríloquo. Se houver espetáculo, voltará a abrir a boca.
Neste ‘exato’ instante
Mas o tempo não pára. Neste exato instante, enquanto os ventríloquos recorrem contra a decisão do STF, eis o passo que a honrada oposição ameaça contra o governo Lula. Acreditem e creiam:
‘O prefeito do Rio de Janeiro, Cesar Maia (PFL), afirmou que garotas de programa agenciadas pela promotora de eventos Jeane Mary Corner poderiam confirmar a ida do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, a uma mansão em Brasília… ‘Eu soube que tem menina da Jeane querendo falar, já procuraram parlamentares nossos dizendo que querem falar… É muito melhor que chamem o caseiro e o motorista e deixem as meninas da Jeane na casa delas porque a vergonha vai ser menor assim”.
Isto deveria estar gravado em letras de ouro, em placa, à entrada do Congresso brasileiro. Prostitutas na CPI. Das que vendem e alugam sexo, queremos dizer. O tempo não pára de ser embusteiro.
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Jornalista e escritor