Para muitos, foi surpresa a ampliação dos serviços da rede de TV árabe al-Jazira e a oferta de conteúdos em língua inglesa. A abertura dessa janela para o Ocidente aconteceu no último dia 15 de novembro, uma estratégia que pretende consolidar um público mundial de 40 milhões de pessoas. Não é pouco para uma rede de apenas dez anos, surgida após o boom provocado pela CNN e sediada no Oriente Médio. Daí o espanto de alguns.
Os mais atentos perceberam antes que esse movimento para oeste era uma conseqüência natural da expansão de uma rede televisiva, fosse de qualquer natureza ou latitude. Afinal, em tempos de globalização, não se pode ignorar metade do mundo. Foi exatamente essa preocupação – estar onde os concorrentes não estão – que fez da CNN o fenômeno televisivo dos anos 90, quando ofereceu intensa cobertura da primeira Guerra do Golfo.
A ofensiva midiática árabe é bem articulada: montou escritórios em Londres e Washington, mesclou profissionais dos quatro cantos do mundo e, a partir de janeiro, sua programação vai consolidar 24 horas diárias de notícias. Assim, a pequena emissora do Qatar se coloca como concorrente direta de gigantes do ramo como a BBC e a CNN.
Valores
A estratégia árabe se pavimenta também sobre outros terrenos que não a tecnologia. No site do serviço em inglês, a al-Jazira anuncia com destaque seu código de ética, conjunto de princípios que orienta a sua atuação em escala internacional. Aliás, é assim mesmo que a rede se define: um serviço de mídia globalmente orientado (trocadilho?).
A missão e a visão da rede estão apoiadas em dez preceitos comuns a qualquer meio de comunicação do Ocidente. Aliás, conhecer o Código de Ética da al-Jazira poderia ser um segundo susto aos incautos, já devidamente doutrinados a julgar os árabes como rudes, primitivos, imorais e cúmplices dos grupos extremistas. O código menciona valores como honestidade, coragem, equilíbrio, independência, credibilidade e diversidade; afirma que a rede não prioriza aspectos comerciais e políticos em detrimento dos critérios jornalísticos, e se esforça para encontrar a verdade; manifesta respeito aos públicos e o compromisso de dar notícias com exatidão e factualidade, apresentando pontos de vista diferentes sem polarização ou parcialidade. Neste sentido, o Código da al-Jazira reforça o empenho no reconhecimento da diversidade das sociedades, retratando-as com isenção. O documento orienta a rede a reconhecer um erro quando ele ocorre, corrigindo-o prontamente, e a ser transparente no trato das informações de análise e de opinião, e evitando conteúdos propagandísticos e especulativos. Por fim, o Código bate na tecla da solidariedade aos colegas de profissão em situações de agressão ou hostilidade, e prega a cooperação entre as corporações jornalísticas árabes e internacionais para defender a liberdade de imprensa.
Como disse, o documento apresentado pela rede do Qatar poderia ter sido redigido em qualquer país da Europa ou nas Américas. Os valores que sustentam o meio são idênticos aos propalados nessas cercanias. Poderíamos inferir que a deontologia jornalística é a mesma mundo afora, que os valores são universais e não poderia ser diferente. Mas não penso assim. Os valores não são universais e não são dados. Eles são construções humanas e, portanto, culturais, subjacentes a contextos histórico-sociais, a dimensões geográficas. Os valores que vigoram por aqui podem ter análogos acolá, mas não são os mesmos nunca. Ou quase nunca.
Como a estratégia da al-Jazira é romper fronteiras e chegar a todo o mundo, nada mais natural do que apresentar alguns dos valores dos seus futuros públicos. Mas não penso que seja apenas um movimento comercial. É preciso lembrar que a rede tem sede no Qatar, uma monarquia do Golfo que está em algumas das vanguardas da região. É preciso lembrar que o Qatar está muito mais aberto ao Ocidente do que outros territórios do Oriente Médio. Não se pode esquecer também que muitos dos valores expressos no Código não colidem com a moral oriental, e não afrontam sua religiosidade. Em alguns casos, poderiam causar problemas para regimes fechados, mas isso não apenas no Golfo Pérsico…
Olhares
A chegada da al-Jazira no espectro televisivo ocidental causa tremores mais nas empresas concorrentes e em alguns governos do que em seus potenciais telespectadores. A teledifusão de vídeos da al-Qaeda em outras ocasiões trouxe não apenas notoriedade à pequena rede do Qatar. Trouxe ainda inimigos – como as parcelas conservadoras dos Estados Unidos – e um rótulo de emissora que dá guarda a terroristas. Aqui no Brasil, a influência norte-americana ajuda a fazer a cabeça nesse sentido. Mas convenhamos, é muito raso pensar assim, é muito conspiratório imaginar que uma rede televisiva seja só porta-voz de um grupo extremista. (Na verdade, as redes – em todo o mundo – servem a muitos grupos, não a um só). Seria um suicídio midiático, um suicídio comercial…
Com a al-Jazira, ampliam-se os olhares que dispomos sobre o Oriente Médio, região que sempre povoou nossa imaginação com magia e preconceito. Ainda confundimos libaneses com turcos, palestinos com israelenses, iraquianos com iranianos; ainda torcemos nossos narizes quando vimos um líder religioso de lá; consideramos as mulheres objetos de opressão, imaginamos que aqueles países são imensos desertos habitados por povos primitivos e que apenas as nossas crenças, os nossos valores e as nossas organizações são sadias, genuínas e verdadeiras. A al-Jazira pode nos oferecer uma visão diferente dessa. Quem tem medo disso? Quem não quer se abrir a essa possibilidade?
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Professor do curso de Comunicação Social – Jornalismo e do Mestrado em Educação da Universidade do Vale do Itajaí; responsável pelo projeto Monitor de Mídia e integrante da Rede Nacional dos Observatórios de Imprensa (Renoi)