Um dado dia de 1975, a Redação de O Estado de S. Paulo, então considerado o jornal mais importante do Brasil, chegou à conclusão de que a Folha fora melhor em determinada cobertura.
Embora Cláudio Abramo, um dos principais jornalistas brasileiros de todos os tempos, tivesse deixado há algum tempo o comando de sua Redação, uma frase sua assombrava os jornalistas da casa, como se fosse bíblica: ‘O grande jornal se conhece nos grandes assuntos’.
Se era assim, a conclusão inescapável era a de que a Folha, um jornal tido como menor à época, estava não só se tornando grande como emparelhando com o concorrente mais tradicional.
Como era assistente do editor-chefe do Estado e, nessa condição, despachava diariamente com o diretor de Redação, Júlio de Mesquita Neto, tocou-me levar essa constatação a ele.
‘Dr. Júlio’, comecei, ‘a Folha foi muito bem nessa cobertura, parece…’.
O diretor cortou-me antes que pudesse concluir: ‘Frias é um comerciante, jamais fará um bom jornal’.
Frias, obviamente, era Octavio Frias de Oliveira, o publisher da Folha.
Foi um erro colossal da família Mesquita.
Frias, de fato, era um comerciante assumido. Mas conseguiu fazer um grande jornal, que logo se tornaria não só o de maior circulação no país, mas também o que mais repercute no mundo relativamente pequeno dos leitores de jornal e nos ambientes político, empresarial, sindical, acadêmico e da sociedade civil em geral.
Sempre que alguém o tratava como ‘doutor’ ou ‘jornalista’, Frias rebatia, até com certa rudeza: ‘Não sou doutor (ou jornalista). Sou comerciante’.
Mas um comerciante pode, sim, fazer um grande jornal, desde que tenha, como Frias tinha, paixão pela notícia, pela grande notícia, é bom especificar.
Pavor das dívidas
Numa época em que a missão do jornalismo era vendida como civilizatória, pedagógica, chocava os puritanos e um bom número de jornalistas a ideia de que fosse também um negócio.
Só entendi o espírito da coisa um pouco mais tarde, quando já havia me transferido para a Folha. Era correspondente em Buenos Aires e, nas férias, em uma de minhas visitas ao ‘velho’, como o chamávamos, queixei-me de estar demasiado confinado a Buenos Aires. Queria viajar mais pela América Latina.
Frias cortou logo o papo com uma frase que não consegui esquecer, mesmo passados quase 30 anos. ‘O que você prefere? Viajar mais ou ter a independência que tem para escrever o que quiser?’. Decodificando: na cabeça do publisher, viajar muito impõe gastos que podem comprometer a saúde financeira da empresa. Sem a higidez financeira, a independência corre riscos.
Nessa conversa, banal e rápida, deu, ainda assim, para entender a combinação negócio/jornalismo que transformou a Folha no que é hoje. Admito que até agora continuo preferindo ambas as coisas, viajar muito e ter a independência que tenho.
Mas passei a entender que a saúde financeira do negócio é tão essencial para o jornalismo como uma ótima reportagem.
Frias era obcecado com a fortaleza da empresa que comandava. Certamente fruto de sua tumultuada vida empresarial anterior, tinha pavor do que chamava ‘entrar no vermelho’, gastar mais do que arrecadar, o que significaria ficar devendo.
Muitas vezes, nas conversas das tardes em que o noticiário não fervia, contava sua angústia no tempo em que corria de um banco para outro, no velho centro financeiro de São Paulo, para empinar um ‘papagaio’ e cobrir, com ele, o ‘papagaio’ a vencer no banco ao lado.
Talvez por isso, antes de fazer jornal, quis sanear a empresa.
Aliança improvável
Como estava no jornal concorrente, não sei dizer em que momento a Folha sentiu que havia ganho musculatura suficiente para disputar a liderança com O Estado.
Mas 1975 pode ser considerado um ano da inflexão. De lá para a frente, o comerciante vestiu-se também de jornalista, sem jamais abandonar o rótulo que preferia.
É razoável supor que a transição de um só traje para ambos tenha sido influenciada pela coragem de trazer Cláudio Abramo para chefiar a Redação, em 1965.
Cláudio dirigira O Estado por dez anos, e sua aliança com Frias era, em tese, improvável. Genial no que fazia, temperamental ao extremo, Cláudio era de esquerda (dizia-se trotskista). Frias, também de temperamento forte, era um fervoroso adepto da livre iniciativa.
Talvez ambos tenham se dado bem porque Frias gostou de vestir também o traje de repórter.
É conhecido o seu furo mais importante, o de anunciar que o presidente Tancredo Neves havia sido operado, horas antes de tomar posse, em 1984, de um tumor benigno e não de diverticulite, como dizia a história oficial.
Notícia era outra obsessão, ao lado de um negócio sadio. Um dado dia de 1999, ele invadiu minha salinha no nono andar com a informação de que um diretor do Banco Central estava prestes a pedir demissão.
Disse-lhe que, se alguém se dera ao trabalho de telefonar para ele com essa informação, o demissionário deveria ser Gustavo Franco, o presidente da instituição, não um diretor qualquer, e a saída significaria mudança da política cambial.
‘Vamos apurar’, açulou Frias. Passamos a tarde apurando, cada um no seu canto, a noite chegou, o primeiro clichê fechou, o nono andar ficou vazio, exceto por nós dois mais Vera Lia Roberto, a eterna secretária do ‘velho’.
O horário do segundo clichê se avizinhava quando ele me chamou para dizer, eufórico, triunfante: ‘Confirmei. É mesmo o Gustavo Franco, que já está limpando as gavetas. Você faz o texto?’.
Fiz, ainda ressabiado e pensando na frase de Júlio de Mesquita Neto, que ouvi 24 anos antes: como é que um comerciante consegue ser tão repórter a ponto de ‘furar’ todos os demais?
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Independência e profissionalização nortearam sócios
Numa sexta-feira, 13 de agosto de 1962, Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho compraram a Folha. Em 24 anos, fizeram do jornal o maior do país graças a uma política de independência e pluralismo – formulada por Frias – e ao arrojo que trouxeram a uma empresa que, apesar dos percalços, já tinha um produto promissor.
Olival Costa (1876-1932) foi um dos fundadores da Folha da Noite Obcecado por técnicas de gestão, José Nabantino Ramos, que dirigiu o jornal de 1945 a 1962, incentivou a profissionalização jornalística e amealhou circulação e visibilidade para a Folha de S.Paulo, título sob o qual reuniu em 1960 as Folhas da Tarde, da Noite e da Manhã.
Os dois últimos jornais haviam sido fundados em 1921 e 1925, respectivamente, por jornalistas liderados por Pedro Cunha e, principalmente, Olival Costa.
Foi Costa quem, à frente da Redação, conquistou os trabalhadores urbanos – muitos deles imigrantes – com um jornal leve, informativo, independente e crítico.
Depredada em 1930, a empresa foi comprada em 1931 pelo fazendeiro Octaviano Alves de Lima e, por um breve período, alinhou-se aos proprietários agrícolas.
As biografias dos donos da Folha têm semelhanças, como a infância difícil, o interesse pela carreira jurídica, o enriquecimento pela persistência e a austeridade.
Frias, porém, tinha o registro mental do empreendedor: a ambição de triunfar e o destemor pelo risco.
A partir dos anos 1980, transferiu a operação executiva para os filhos Luiz e Otavio, mas continuou a supervisionar os negócios, aprovar editoriais e receber visitantes até 2006. Morreu em 27 de abril de 2007, aos 94 anos.
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Colunista da Folha de S.Paulo