Clóvis Rossi escreveu na quinta-feira (23/6) um texto intitulado “A subversão pelos mercados”. Na página 2 da Folha de S. Paulo, de grande visibilidade, constatou que “os tais mercados estão subvertendo a ordem pública e a democracia, sem que se arrisquem a ir para a cadeia”. Em sua coluna na mesma Folha, Vinicius Torres Freire costuma dar bordoadas na relação entre governos e setores empresariais. Em 5 de abril, escreveu, sobre agências de classificação de risco:
“Essas agências são negligentes, ineptas e mesmo cúmplices de desastres como a crise de 2008, quando se encontravam no lixo zilhões de papéis (investimentos) que delas haviam recebido ‘nota dez’. As autoras das proezas são a Fitch (que deu nota azul ontem ao Brasil), a Moody’s e a S&P, as três irmãs mais poderosas do ramo. Ou três porquinhas, mais adequado dizer, dada a qualidade do seu serviço.”
Esses são apenas dois exemplos de uma visão crítica que deve ser valorizada quando se busca o jornalismo independente – não de forma utópica, mas dentro de um padrão em que a preocupação com a situação do país, ou do mundo, é maior do que o escrúpulo, a timidez, o interesse ou a covardia diante dos poderosos. É claro que jornalismo só deveria ser reconhecido como tal se independente. Mas o emprego do substantivo alargou-se de tal modo que se tornou necessário recorrer ao adjetivo.
“Torcida” pelas empresas
No Brasil, país ainda em busca de uma identidade econômica desenvolvida – agora mesmo (Valor, 21/6) o ex-ministro Delfim Netto advertiu: “Não devemos nos iludir com nosso modelo agrominerador” −, há uma “torcida” muito grande pelas empresas.
Ao mesmo tempo, o país foi construído pelo colonizador de cima para baixo. Os governos são sempre muito fortes em face dos cidadãos. Ou, mais precisamente, como na Itália analisada por Pietro Nenni, “fortes diante dos fracos e fracos diante dos fortes”.
Acrescentem-se quase quatro séculos de escravidão, e cinco de latifúndio, e se entenderá melhor por que as desigualdades imperam. Entre elas, a que inferioriza o jornalista independente, e mesmo o veículo em que trabalha, diante dos poderosos, governos ou empresas.
Não é retórica. São fatos. Basta fazer um catálogo das denúncias graves surgidas neste ano em jornais e revistas, e avaliar que danos causaram aos denunciados (reputação atingida, prejuízo comercial, perda de emprego ou de mandato, multa, encarceramento ou punição alternativa) para verificar que a mídia brasileira não move montanhas, às vezes nem montículos. Por mais que se denuncie a arrogância do “quarto poder”.
As denúncias, quase sempre, são feitas de modo genérico, sem dar nome aos bois.
Assopra, mas morde
Por mais que tenha colaborado poderosamente para semear ilusões que estão na origem da crise iniciada em 2008, a imprensa americana não se abstém da crítica, eventualmente nominal, e devidamente assinada, a empresas, setores empresariais, governos e grandes investidores.
Se, de um lado, ainda em 2001 Bernard L. Madoff era ouvido como “estrategista” do mercado de capitais americano após o início da invasão do Afeganistão (The New York Times, 9/10/2001), não é nada raro encontrar artigos contundentes como o distribuído pela Bloomberg em 7 de abril deste ano e traduzido pelo Valor Econômico (19/4) sob o título “Buffett mostra que está longe de ser um modelo moral”. Nele, Jonathan Well discorre sobre o que brasileiros chamariam, provavelmente, “falta de caráter” do mitológico investidor Warren Buffett, apontado como modelo em tantas coisas, da agilidade negocial à filantropia (ver abaixo).
A Bloomberg tem milhares de artigos assim. Desde que a empresa processou o Federal Reserve para obter informações sobre os pacotes de resgate de bancos em 2008 (descobriu, depois de ganhar a causa na Suprema Corte, que a maior parte do dinheiro foi para bancos… europeus), foi criada uma editoria de “Projetos e Investigações” dedicada exclusivamente ao mercado financeiro.
Surgiu também a área “Bloomberg Government” (por enquanto com foco só em Washington). Aí, grande parte dos recursos é dedicada a cruzar os dados de investimento ou orçamento que o governo divulga e as empresas que potencialmente se beneficiam, ou a percepção do mercado financeiro sobre o assunto. O cruzamento de política e microeconomia tem gerado reportagens importantes.
Insatisfação velada
Por que a Bloomberg trabalha desse modo? Para ter credibilidade, alma de seu negócio. É verdade que a credibilidade serve para estribar “erros” monumentais, como os cometidos pela mídia durante a aproximação da mais recente crise, que a cada dia adquire na Europa tons mais dramáticos e resiste nos Estados Unidos às medidas do governo.
No Brasil, a parte mais influente do público leitor das editorias de economia não manifesta abertamente o grau de ceticismo ou descrédito com que tempera sua leitura cotidiana. Em conversas reservadas com empresários e executivos, o que se ouve sobre a cobertura de economia – geralmente feita por jornalistas com boa formação − é uma combinação de insatisfação e sarcasmo.
Essas reações são provocadas pela facilidade com que as editorias de economia “engolem” versões de empresas, mesmo quando o repórter não se limita a trabalhar com press-release preparado por assessoria de imprensa. O “ritmo industrial” acaba servindo de álibi para o trabalho malfeito.
Se a sociedade americana é tida como hipócrita em questões de comportamento e sexo, em matéria de negócios talvez haja lá mais cínicos do que ingênuos. Sem desmentir o componente paradoxal de que no capitalismo dito anglo-saxão a palavra vale tanto ou mais do que o escrito.
Segredos de polichinelo
No Brasil, muitas vezes a reverência ao formal aliena indivíduos e instituições do que é substantivo. A ingenuidade, a continência e o rapapé ainda predominam. E quando a crítica aflora, costuma vir de forma anárquica, violenta, persecutória. Convivem com boas e muito boas reportagens, na cobertura de economia como nos demais departamentos do jornalismo brasileiro, a insciência e um destempero que transforma infratores em vítimas. Quando não transforma inocentes em alvo de perseguições kafkianas. E advertências como as de Clóvis Rossi e Vinicius Torres Freire passam batidas.
Ao traduzirem reportagens e artigos como o de crítica a Warren Buffett, jornais brasileiros mostram ter consciência de que existe um caminho de independência que merece ser estudado e até, mutatis mutandis, copiado. Por enquanto, a linha geral reflete certo conformismo, certa relutância em enxergar a nudez do rei. Até que algum acidente de percurso fure a bolha impalpável que envolve cada um desses segredos de polichinelo.
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Buffett mostra que está longe de ser um modelo moral
Jonathan Weil | Bloomberg, de Nova York # reproduzido do Valor Econômico, 19/04/2011
Muito tempo atrás, quando eu era um jovem repórter que cobria o Legislativo do Estado de Arkansas para o jornal da cidade de Little Rock, eu ouvia periodicamente nos corredores uma ladainha sobre o padrão moral dominante adotado pelos parlamentares ao defender os interesses do povo, chamado “a regra do faça direito”.
Ela determinava: se sou eu que faço, precisa sair direito. Isso nos leva ao assunto Warren Buffett, partidário de longa data de sua própria versão da regra do faça direito, que não tem qualquer significado especial a não ser o fato de ser versátil e soar informal e popularesca. O problema com essa regra é que ela funciona bem até o momento em que não funcionar bem. E, ultimamente, no caso de Buffett, um dos maiores criadores de valor de todos os tempos, seu funcionamento não tem sido tão bom.
Veja-se a ríspida reação pública à despedida calorosa dada por Buffett na semana retrasada a David Sokol, 54, diretor de várias subsidiárias da Berkshire Hathaway que vinha sendo encarado, em amplos círculos, como sucessor de Buffett no banco dos reservas.
Na carta em que informava o pedido surpresa de demissão de Sokol, Buffet elogiou as “extraordinárias” contribuições de Sokol. Contou como Sokol comprara milhões de dólares de ações da Lubrizol para si mesmo, pouco antes de ter sugerido (com sucesso) a Buffett que a Berkshire comprasse a empresa. Foi tudo dentro da legalidade, opinou Buffett. Buffett também nos contou que Sokol tinha dito que suas compras de papéis da Lubrizol “não pesaram em sua decisão de pedir demissão”, como se desse para acreditar.
Só no fim de sua carta é que comecei a me perguntar se Buffett tinha ficado louco. “Eu não omiti nada nesta declaração”, disse ele. “Portanto, se for questionado sobre esse assunto no futuro, simplesmente reencaminharei o questionante a este informe.”
Portanto, não são apenas alguns questionantes que obterão o tratamento de “O Grande Oz Falou” de Buffett. Todos os questionantes o obterão, o que é loucura. Quero dizer, o que ele fará se e quando a Securities and Exchange Commission (SEC) lhe perguntar sobre as transações de Sokol? Vai recorrer à 5ª Emenda [que reserva ao cidadão o direito de não dar declaração que deponha contra si mesmo]?
Este deveria ser um momento de definição para Buffett, e para a opinião pública, por cuja adulação de astro do rock ele anseia. Talvez agora o mundo compreenderá que nós nunca deveríamos tê-lo colocado como exemplo – e aceitado sua mise-en-scène -, como modelo moral na área de negócios.
Claro, podemos admirar seu talento para a análise de ações e seu sucesso na construção de um império e no seu enriquecimento, e o de muitos outros investidores. Mas vamos deixar de lado as exaltações à sua fala franca e sua ambição de ter um caráter forte. Ele é o principal executivo de uma companhia, meu Deus do céu! Esses são os tipos de artimanhas que passamos a esperar de muitos executivos.
Buffett, cujo histórico em termos de arranhões de reputação é longo e variado, não é exceção.
Ele estava no comitê de auditoria do conselho de administração da Coca-Cola quando a SEC descobriu que a empresa tinha ludibriado os investidores sobre seus lucros durante a década de 1990. Ele silenciou sobre a Moody's quando ela enganou a opinião pública com incontáveis notas AAA para todo aquele lixo de bônus de crédito imobiliário “subprime”, quando a Berkshire era sua maior acionista.
Quatro ex-executivos da divisão Gen Re da Berkshire receberam sentenças de prisão por ajudar o American Internacional Group (ING) a cometer fraude contábil uma década atrás. Pelo menos nesse caso, depois que a Gen Re pagou US$ 92 milhões, no ano passado, para encerrar com acordo denúncias dos investidores e pôr fim às investigações do governo, Buffett reconheceu publicamente que a empresa tinha feito coisa errada.
E qual será, na verdade, o grau de importância que o conselho de administração da Berkshire atribui ao uso de informações privilegiadas por pessoas de sua confiança, afinal?
A empresa manteve a Deloitte & Touche como sua auditoria externa depois de saber, em 2008, que o vice-presidente da Deloitte comprou e vendeu freneticamente ações da Berkshire quando era um dos sócios consultivos na auditoria da Berkshire. Isso fez com que a Deloitte e a Berkshire infringissem as normas da SEC sobre a independência dos auditores, disse o órgão no ano passado.
Em vez de mudar de empresa, no entanto, a Berkshire concluiu que a Deloitte era independente, de qualquer maneira. A SEC aceitou isso, o que, em última instância, era o que interessava, e não alguma virtude maior da Berkshire em manter aparências impolutas. (O ex-sócio da Deloitte pagou no ano passado cerca de US$ 1 milhão para encerrar com acordo as acusações de fraude interpostas pela SEC.)
Às vezes as grandes mentiras da Berkshire são mais sutis. A última declaração para voto por procuração da empresa arrola Bill Gates, presidente do conselho de administração da Microsoft, como um conselheiro “independente”, embora Buffett tenha comprometido a maior parte de sua fortuna de US$ 47 bilhões com a Fundação Bill & Melinda Gates. Isso pode estar certo pela definição de “independente” da SEC, mas não pelos padrões do senso comum.
Outro conselheiro supostamente independente é Walter Scott, que detém 9,4% das ações com poder de voto na MidAmerican Energy Holdings, subsidiária da Berkshire, da qual Sokol está pedindo afastamento como presidente do conselho de administração. A declaração para voto por procuração da Berkshire nos assegura que essas questões foram devidamente examinadas.
A Berkshire encaminha milhões de dólares de honorários, todos os anos, para a Munger, Tolles & Olson, o velho escritório de advocacia do vice-presidente de seu conselho de administração, Charlie Munger, onde o diretor da Berkshire Ronald Olson é um dos sócios. Entre os demais conselheiros estão o filho de Buffett, Howard. Na maioria das empresas com ações negociadas em bolsa esses acordos seriam tidos como exemplos de má governança. Pelo fato de se tratar de Buffett, a Berkshire normalmente tem salvo-conduto.
Existe um parâmetro pelo qual Buffett, de 80 anos, tem sido enormemente bem-sucedido: “No caso da Berkshire, lhe dissemos muito tempo atrás que nossa tarefa é aumentar o valor intrínseco por ação a uma taxa superior ao aumento (incluindo dividendos) da S&P 500”, escreveu Buffett em sua mais recente carta anual aos acionistas.
Isso, ao lado de encontrar um sucessor capacitado, é o padrão pelo qual os investidores deveriam julgá-lo e vão julgá-lo. Alguém que esteja à cata de um herói para idolatrar deve procurá-lo em outro lugar.
[Jonathan Weil é colunista da Bloomberg News. As ideias expressas neste artigo refletem unicamente os pontos de vista do autor.]