Observar a revista Veja é paradoxalmente fácil e difícil a um só tempo. Fácil, porque a principal publicação semanal do país há muito se transformou em um panfleto ideológico, deixando em segundo plano o jornalismo propriamente dito. Difícil, porque muitas vezes é complicado perceber qual a exata motivação da revista em certas matérias. Pode ser uma coisa, mas também pode ser outra, e não adianta procurar a resposta nas entrelinhas ou nos recados passados ao logo do texto: a resposta só poderá ser encontrada mesmo na redação, no prédio da Editora Abril.
A reportagem publicada nesta semana (edição 2103, de 11/03/09), intitulada ‘Sem limites’, sobre as atividades do delegado Protógenes Queiroz, é um excelente exemplo da facilidade e dificuldade para analisar o que é produzido por Veja. Em linhas gerais, a revista acusa o delegado responsável pela Operação Satiagraha da Polícia Federal (e pela prisão do ex-banqueiro Daniel Dantas) de ter montado uma ‘máquina ilegal de espionagem’ por meio da qual teria bisbilhotado a vida de autoridades, supostamente em nome do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Para fazer a acusação, a reportagem de Veja, assinada por Expedito Filho, Alexandre Oltramari e Diego Escosteguy, ‘teve acesso’ ao conteúdo de um computador apreendido por policiais na casa do delegado Protógenes, no Rio de Janeiro – ele está sendo investigado pela PF por supostos abusos cometidos durante a Operação Satiagraha. Segundo a revista, seriam ’63 fotografias, 932 arquivos de áudio, 26 arquivos de vídeo e 439 documentos em texto’, material que estaria armazenado ‘em um computador portátil e em um pen drive’.
‘Estrito cumprimento da lei’
A primeira pergunta que não quer calar é justamente como Veja ‘teve acesso’ aos documentos. Parece óbvio que se trata de mais um caso clássico de vazamento, e já por aí a reportagem começa torta: qualquer que seja o vazador, é óbvio que existe um interesse político ou pessoal por trás da entrega do material à revista. Sim, Veja não está obrigada a revelar as suas fontes, mas desde logo o leitor precisa saber que não se trata de uma apuração dos jornalistas do semanário, de um furo de reportagem. O ‘material’ chegou lá, prontinho para ser deglutido, digerido e transformado em chamada de capa.
Em casos assim, em geral convém lembrar a velha questão latina: cui prodest, a quem aproveita? É aí que reside a dificuldade para a análise. Basicamente, são três os beneficiários da ‘denúncia’ da revista Veja: o ex-banqueiro Daniel Dantas, para quem a desmoralização de Protógenes é sempre um alento; o deputado federal Marcelo Itagiba (PMDB-RJ), presidente de uma CPI dos Grampos que estava por terminar e pode ganhar fôlego, mantendo o parlamentar sob os holofotes da mídia; e os inimigos do delegado na Polícia Federal e no governo em geral. De alguma destas três partes deve ter vindo o vazamento das informações do inquérito sobre Protógenes – é certo como dois e dois são quatro que Dantas, Itagiba e a turma da pesada da Polícia Federal ou da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) teriam acesso aos documentos e também todas as condições de vazar o material para a Veja.
Ainda no fim de semana, o delegado se manifestou desmentindo o que foi publicado na revista e, na segunda-feira (9/3), escreveu em seu blog uma longa contestação, na qual diz ser criminosa a publicação de ‘documento sigiloso de uma investigação presidida pelo Delegado de Polícia Federal Amaro Vieira Ferreira IPL 2-4447/2008 – DELEFAZ/SR/DPF/SP’. Ele também afirma que em sua casa ‘não foi apreendido nenhum documento ou material, nem tampouco computador contendo dados da operação Satiagraha’. Segundo Protógenes, apenas ‘documentos pessoais (…) e materiais referentes à atividade de inteligência’ foram apreendidos e todos teriam sido ‘coletados no estrito cumprimento da lei e da Constituição da República’.
Peso do passado
É possível e até provável que o delegado Protógenes Queiroz tenha realmente cometido abusos durante a operação que levou Daniel Dantas pela primeira vez à prisão. Ele está sendo investigado exatamente por seu comportamento, para dizer o mínimo, pouco ortodoxo. Também é possível e bastante provável, por outro lado, que a revista tenha ‘esquentado’ o material que recebeu de mão beijada para tentar provar uma tese, qual seja a de que a investigação comandada por Protógenes está prejudicada pelos vícios cometidos durante a operação. Mais ainda, Veja tenta mostrar que o delegado estava realizando diversas investigações paralelas e inclui José Dirceu, Mangabeira Unger, Fernando Henrique Cardoso, Dilma Rousseff e José Serra entre os investigados. Ou seja, que ele age ao arrepio da lei e é mais um ‘aloprado’, não petista, neste caso, porque é público e notório que o delegado é simpático ao PSOL de Heloísa Helena e Luciana Genro.
É preciso mesmo ter dois pés atrás ao ler a reportagem de Veja. Há trechos que soam até fantasiosos, como o relato sobre os ‘documentos apreendidos com a equipe do delegado e que estão protegidos por senhas de acesso, com codinomes como `Tucano´, `FHC´ e `Serra´’. Será que o pessoal tentou a senha ‘PSDB’ para abrir os arquivos? Também não deixa de ser interessante que a revista tenha revelado o conteúdo de alguns documentos na reportagem, mas ao mesmo tempo tenha evitado disponibilizar na internet a íntegra do material ‘a que teve acesso’, até para que os leitores pudessem formar melhor juízo sobre as fontes que a revista utilizou para realizar a matéria.
São tantos os interesses em jogo em torno da Operação Satiagraha – por parte do governo, da oposição, de Dantas, da CPI dos Grampos, das várias alas da Polícia Federal e da Abin – que é difícil entender qual é a real motivação da reportagem publicada por Veja. Muito mais difícil, porém, é acreditar que a revista tenha realizado um trabalho jornalístico para levar a seus leitores a verdade dos fatos. Ou que tenha entrado de inocente útil em uma disputa política alheia a seus próprios interesses ou de seus aliados. O passado recente de Veja não autoriza nenhuma dessas leituras, muito menos as fontes utilizadas para a reportagem em questão.