Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O desastre e a arrogância

A imprensa tem personalidade própria ou acaba sendo um reflexo do seu país?

A pergunta me ocorreu ao assistir o noticiário da TV americana sobre o tsunami, logo no segundo dia, quando o número conhecido de mortos já era espantoso, mas ainda longe do que viria a ser confirmado. A CNN, no seu melhor estilo, apresentou um programa especial de duas horas sobre o tema, em 27/12, no segundo dia da tragédia. As imagens ainda eram poucas: mostravam casebres destruídos, sofás boiando ao lado de um aparelho de TV, um ônibus coberto pela água suja onde um homem era resgatado. E um corpo boiando na água.

No estúdio, num ambiente da mais alta tecnologia, o apresentador recebia seu convidado, um especialista em furacões, maremotos e outras tragédias provocadas pela natureza. Até aí, tudo bem. Afinal, pauta de tragédia varia pouco: descrição do fenômeno, de preferência com imagens chocantes, entrevista com sobreviventes e especialistas tentando explicar o que aconteceu.

O que chocou foi a insistência do apresentador em culpar os governos dos países atingidos por não terem emitido um aviso da tragédia. Como (dizia o âncora da TV) esses governos não têm tecnologia para prevenir catástrofes? A coisa ficou pior ainda quando o professor garantiu que há dois anos os governos da região estavam avisados de que, mais dia menos dia, poderia ocorrer um terremoto seguido de um tsunami naquela área. E, ainda segundo o expert, bastava ter um equipamento apropriado para evitar as mortes, que aquela altura ainda não estavam totalmente contabilizadas. Equipamento que, ele garantiu, ‘nem é tão caro assim’.

Nenhum dos dois mencionou, uma vez que fosse, o fato de se tratar de países pobres, onde a tecnologia custa, e custa muito.

Desastre natural

No lounge do aeroporto de onde assisti ao programa, os americanos ao meu lado só ficaram mais sossegados (e imediatamente desinteressados) quando o professor garantiu que, caso um fenômeno daquele tipo atingisse os Estados Unidos, haveria avisos suficientes para garantir a segurança da população. Eles respiraram aliviados, voltaram para seus copos de cerveja e para seus assuntos, enquanto o âncora do programa comentava, mais uma vez, o ‘descaso’ dos países envolvidos.

Em momento nenhum mostraram um mapa, para que os espectadores pudessem ao menos saber de que lado do mundo vive aquela gente que alguns de seus compatriotas conhecem um pouco mais porque gostam de passar férias em lugares exóticos onde o dólar ainda é valorizado.

A verdade é que, tanto na imprensa escrita como na TV americana, o resto do mundo pouco aparece. É preciso uma grande tragédia para dar destaque ao outro lado mundo, tragédias como o tsunami. Ou a guerra do Iraque, presente diariamente no noticiário, mas só do ponto de vista do governo Bush, é claro, e sem as repercussões entre líderes europeus, exemplo.

Foi preciso um desastre natural na proporção deste tsunami para que uma outra parte do mundo ocupasse, nos noticiários comuns da TV aberta, algum espaço entre as compras de Natal, as malas perdidas e os roubos cometidos por funcionários vistoriavam bagagens.

Aqui é diferente?

No Brasil, a diferença aparece, pelo menos no primeiro momento, quando nossos jornais e emissoras de TV tratam de apresentar mapas e dar um pouco mais de informação sobre o local atingido. Mas, com o passar do tempo, acabamos inundados com um noticiário em que repórteres apelam até para os Lusíadas na abertura de suas matérias.

Afinal, em época de férias – que começaram agora e só terminam depois do Carnaval – o que seria dos jornalistas se não fossem as tragédias de fim de ano e as histórias humanas que elas rendem?

A favor da imprensa brasileira, em comparação com a norte-americana, é preciso dizer que, pelo menos nesse caso, fomos menos arrogantes. E, quando um âncora da TV americana critica o governo de países pobres porque não têm tecnologia, a gente acaba se dando conta do imenso abismo entre a imprensa de um país rico e a nossa.

Eles se comportam como ricos que são – tipo ‘se não têm pão comam brioche’ – com o direito de falar mal de outros países. Aqui, a ênfase fica na tragédia humana, como se houvesse um certo alívio ao perceber que tem gente no mundo em pior situação que a nossa.

******

Jornalista