Friday, 08 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

O difícil uso do “por que” no jornalismo econômico brasileiro

(Foto: Jorge Araujo/Fotos Públicas)

Certamente um dos episódios mais cômicos do jornalismo esportivo brasileiro, e que se tornou um hit na internet, foi a apresentação de Waldemar de Lemos como técnico do Flamengo em outubro de 2003. O clube passava por mais uma crise, o que era bastante comum naquele tempo, e por isso demitira o então técnico Oswaldo de Oliveira, irmão de Waldemar. Na entrevista coletiva em que o novo técnico foi apresentado, o dirigente Eduardo de Moraes, o Vassoura, anunciou:

— E o novo técnico do Flamengo é o senhor Waldemar.

De imediato os torcedores presentes começaram com as vaias. Compreensível, uma vez que o novo treinador era um profissional inexperiente para comandar um grande clube como o Flamengo e que ainda por cima era irmão do antigo treinador. Mas uma das melhores cenas do episódio foi o jornalista Cícero Melo da ESPN Brasil perguntando ao assustado dirigente: “Por que Waldemar?”.

Quando se assiste ao vídeo, a pergunta de Cícero Melo parece não fazer parte daquele enquadramento. Uma confusão formada, torcedores com nervos aflorados, clube em crise e uma tentativa de entender a motivação daquela contratação que dado o momento não fazia muito sentido. A ideia de dar sentido às ações, coisas e sentimentos é uma das características que nos diferencia enquanto seres humanos dos outros animais. E na modernidade, recuperando aqui um pouco das reflexões de um famoso sociólogo alemão do início do século XX, seria a racionalidade, ou a utilização da razão instrumental, uma característica de nossos tempos.

Assim, a pergunta de Cícero Melo me parece melhor enquadrada no caos que eram as crises do Flamengo. Claro que não é necessário teorizar muito sobre o porquê das pessoas perguntarem o porquê das coisas. Descobrir as causas e efeitos do que acontece ao nosso redor é tarefa mais do que rotineira para qualquer criança que começa a se encantar pelo mundo que a cerca. Daí as constantes perguntas “Mas por que isso?”, “Por que aquilo?”, “Como as crianças nascem?”.

Por isso, voltando ao jornalismo, mas mudando de editoria, eu sempre me surpreendo com grande parte do jornalismo econômico brasileiro. São raras as vezes em que algum suposto especialista é entrevistado e se ouve a pergunta “Por quê?” para alguma afirmação. Dou exemplos. Muito foi dito em 2019 pelos tais especialistas, seja no jornalismo impresso, televisivo ou nos portais da internet, que a reforma da previdência traria crescimento econômico. Muito foi dito sobre como a reforma trabalhista aprovada em 2017 aumentaria a quantidade de empregos. Muito se diz sobre a importância de manter as contas públicas “equilibradas” para que não haja (ainda mais) crise. Muito se diz que a iniciativa privada é mais eficiente na entrega de serviços públicos. Mas por quê?

Duas pesquisas publicadas em 2019 sobre a imprensa e as propostas de reforma da previdência conseguiram demonstrar a grande presença de especialistas comentando tais propostas e a posição hegemônica destes em favor das reformas. A primeira dessas pesquisas é a dissertação de mestrado “O Jornalismo Econômico e a Cobertura da Previdência nos Anos de Discussões das Reformas” defendida por Tatiana Santos Moreira de Souza na Universidade Federal do Tocantins (UFT) e que buscou analisar as formas como os principais jornais impressos do país (Folha de S. Paulo, Valor Econômico, O Estado de S. Paulo e O Globo) abordaram as discussões sobre as propostas de reforma da previdência nos períodos de 1998, 2003 e 2016-2017. A outra pesquisa mencionada é o estudo denominado “Vozes Silenciadas: Reforma da Previdência e Mídia” realizada pelo Instituto Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, sob a liderança de Rodolfo Viana. Esse estudo é o terceiro de uma série chamada Vozes Silenciadas e realizou um importante levantamento sobre quais foram os posicionamentos que especialistas apresentaram na grande mídia nacional (jornalismo impresso e televisivo) sobre a reforma da previdência de 2019, quais vozes foram ouvidas e quais foram silenciadas.

Dentre os muitos dados interessantes que essas duas pesquisas nos revelam, cabe aqui destacar que as vozes favoráveis às reformas são hegemônicas em todos os jornais e telejornais estudados. E mais, quando se tratou da discussão entre sistema previdenciário por repartição (modelo que envolve forte solidariedade entre os cidadãos e no qual o pagamento dos benefícios aos aposentados é feito com o montante arrecadado dos contribuintes) e modelo de capitalização (modelo individualizado, no qual o benefício é concedido através de um fundo individual, aplicado geralmente por instituições financeiras), a balança sempre pendeu mais para o segundo.

Temos então uma situação onde o povo brasileiro é informado de modo tendencioso por basicamente todos os principais meios de comunicação do país em discussões que afetarão diretamente no seu bem estar atual e futuro. Claro que em discussões complexas como previdência social, relações trabalhistas ou política fiscal, a consulta a especialistas não é só bem vinda, ela é fundamental. Entretanto, a consulta quase que exclusiva a especialistas que rezam as mesmas cartilhas, que estudaram nas mesmas universidades e que trabalham nas mesmas instituições acaba por sugerir um falso consenso. Existem especialistas que estudaram tanto (ou mais) essas questões, e que possuem posicionamentos diferentes dentro das universidades, dos sindicatos e dos movimentos sociais.

Contudo, mesmo considerando a homogeneidade de pensamento dos especialistas consultados atualmente, não consigo entender a razão de uma simples pergunta como “por quê?” ser feita com tão pouca frequência. No trabalho de Paula Puliti (O Juro da Notícia, de 2013) e nas pesquisas recentes do pesquisador Tomas Undurraga, algumas hipóteses podem ser levantadas, desde o patrocínio concedido aos canais de imprensa por empresas financeiras, a maior facilidade do contato entre jornalistas e economistas que compartilham dessas visões (lembrando que basicamente todos os grandes bancos contam com economistas com media training e departamentos econômicos produzindo dados e relatórios econômicos que são encaminhados direto para os jornalistas), a dificuldade de comunicação entre jornalistas e economistas acadêmicos que poderiam ser contrários a essas visões, e até a pura cegueira ideológica. Há quem cogite inclusive uma monstruosa humildade dos jornalistas econômicos sobre seu objeto de trabalho, de forma que quando se deparam com os tais especialistas, se sentem intimidados de questioná-los.

Pode ser que uma, duas, todas ou nenhuma dessas hipóteses seja verdadeira. E na verdade, pouco importa para o cidadão ou cidadã comum que pretende se informar. Se o jornalismo é realmente um dos pilares da democracia liberal, para sustentar esse castelo ele tem que corresponder à sua missão, ou seja, ir aos fatos e dar sentido a eles. Dar sentido aos fatos significa também perguntar o porquê das coisas serem como são e o porquê de alguém estar propondo que as coisas sejam como eles dizem que devem ser. Aliás, de igual importância seria contrapor esses porquês já estabelecidos por porquês alternativos, contribuindo para a pluralidade de visões de mundo.

Talvez depois de descobrirmos porque Waldemar, poderemos ainda tentar descobrir “Como?”, “Para quem?”, “Com quem?”, e ainda, “Por que não o Vanderlei, o Luís Antônio, o Adenor ou o Mario Jorge?”.

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Diego José Nogueira Fraga é sociólogo, mestre em políticas públicas e doutorando em sociologia. É pesquisador do laboratório Desenvolvimento, Trabalho e Ambiente (DTA-UFRJ) e se dedica atualmente aos estudos sobre ideologias e discursos econômicos e políticas de proteção social.