Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O dilema ético

Não deixou de ser uma grata surpresa a postura independente e corajosa do STJ ao indiciar os 40 denunciados pelo procurador-geral da República como integrantes do chamado mensalão. Algo que deveria ser uma prática normal num ambiente sadio e civilizado, mas que acaba sendo motivo de alvíssaras num país em que o conceito de justiça vem se deformando através dos tempos, em função de meandros jurídicos que só têm feito incentivar e premiar a criminalidade. Nesse contexto, não passa de perfumaria a discussão se a pressão da mídia contribuiu ou não para a decisão histórica, no ensejo da indiscreta foto da troca de e-mails entre dois juízes, publicada pelo jornal O Globo, sugerindo uma combinação de votos entre os magistrados. Imperdoável mesmo seria se o Supremo livrasse a cara dessa gente.

É claro que o indiciamento é apenas o primeiro passo de um processo que pode se arrastar por vários anos, não devendo, portanto, ter conseqüências imediatas para os envolvidos. A não ser o da execração pública, o que para eles, em todo caso, não chega a ser novidade, como protagonistas de maracutaias que recheiam os noticiários há mais de dois anos. De qualquer forma, com o esclarecimento minucioso e irrefutável do esquema montado para garantir o necessário apoio às propostas governistas, mediante o pagamento de propinas disponibilizadas pelas empresas de Marcos Valério, o subterfúgio jurídico da ausência do flagrante é tudo o que resta aos réus para se safarem de acusações que podem, em tese, obrigá-los até a devolver a grana surrupiada dos cofres públicos. Cana que é bom, acho que já seria esperar demais.

Parte sadia da sociedade

É dentro dessa estratégia, de resto também adotada pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, nesse imbróglio da origem suspeita de seus rendimentos, que o ex- ministro da Casa Civil e eminência parda do governo petista, José Dirceu, pretende se livrar da acusação de ser o chefe do esquema. Pode até colar, dada a elasticidade dos preceitos jurídicos, mas a esta altura, diante da profusão de dados e evidências que pesam sobre os acusados, só mesmo os governistas incondicionais para aceitar e até defender a tese, óbvia e surrada, de perseguição política e conluio da mídia. Afinal, no vale-tudo da seara política, e ainda mais no conspurcado universo petista, complacência e pusilanimidade passaram a ser uma questão de sobrevivência.

À luz dos fatos, trata-se, obviamente, de alegações feitas em desespero de causa, que não encontram sustentação na realidade, pois nem a oposição, e muito menos a imprensa, podem servir de bode expiatório para delitos tão graves. Se ambos eventualmente extrapolaram na exploração do caso, isso não serve para justificar ou mesmo atenuar a responsabilidade dos envolvidos. Chega a ser surreal que, mesmo diante da contundência das denúncias, ainda se tente confundir a opinião pública, evocando-se uma possível pressão da mídia sobre o júri, dentro da surrada tese do complô midiático, brandida pelos acusados e seus defensores com a desfaçatez de sempre.

No que se inclui a estabanada manifestação de solidariedade do próprio presidente Lula,nesse fim de semana,por ocasião da festividade do PT,contrariando sua reação inicial de isenção perante a decisão do Supremo. Recaída coroada por uma não menos deplorável exortação de apoio aos indiciados e às virtudes morais e éticas que ninguém em sã consciência pode mais associar ao PT.

Talvez premido pela entusiástica reação popular a decisão do Supremo,cujos membros passaram a ser vistos por muitos como verdadeiros heróis,Lula não se constrangeu em recorrer ao velho e modorrento discurso da polarização,com o qual se deu bem nas eleições.Cantilena na qual não faltou,é claro,as costumeiras menções desairosas à imprensa,endossando inclusive as queixas petistas de que o tribunal agiu sob pressão.

Pressão que pode até ter ocorrido, diga-se de passagem, mas a meu ver plenamente justificável e compatível com a indignação da parte sadia de nossa sociedade, cuja crença na justiça foi em parte resgatada com a postura honrada do Supremo.

Instinto jornalístico

Se o júri foi ou não influenciado pelo clamor público, é um detalhe que só para os acusados tem importância. Para as pessoas de bem, não poderia ter sido outra a decisão de nossa Suprema Corte. Não poderia ter sido outro o comportamento da imprensa. Com ou sem invasão de privacidade, a mídia cumpriu o seu dever de repercutir e fiscalizar os fatos de acordo com sua importância. Se há casos em que os fins justificam os meios, este foi um deles.

Há momentos em que entre o dilema ético e o vislumbre de elementos que possam desvendar os fatos, o instinto jornalístico deve falar mais alto, se dentro dos limites da responsabilidade, melhor ainda. O que pode parecer bisbilhotice indevida e inconstitucional, às vezes é o único recurso para desmontar farsas como as habitualmente protagonizadas por nossos políticos e imitadores.

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Jornalista, Santos, SP