Um dos contos mais perturbadores de Kafka é ‘A Porta da Justiça’, sobre o cidadão que chega à dita cuja e é impedido de entrar pelo brutamontes que a guarda. Este adverte que, se o pleiteante conseguir passar por ele, terá pela frente guardiães ainda mais ameaçadores.
O homem que busca justiça se conforma e lá permanece resignadamente, à espera de que lhe seja permitido o acesso. O tempo passa, sua saúde se deteriora. Quando está agonizando, pergunta ao guarda para que servia, afinal, aquela porta, já que ninguém mais tentara passar por ela.
Recebe a resposta de que aquela porta se destinava exclusivamente a ele. Com sua morte, seria fechada para sempre.
Eu enfrento situação similar diante da porta do direito de resposta na Folha de S.Paulo.
Em meados de 1994, fui acusado de delator da área de treinamento guerrilheiro da VPR em Registro, na capa da ‘Ilustrada’, por Marcelo Paiva. A editora me concedeu o direito de resposta, mas o Paiva contra-atacou. Reivindiquei, então, o direito que o Manual de Redação da própria Folha me assegurava, de uma intervenção final.
Gravíssimo erro
A editora tentou esquivar-se, pretextando falta de espaço. A então ombudsman, bizarramente, endossou sua posição. Então, tive de me dirigir diretamente ao diretor de redação, Otavio Frias Filho, para que o jornal honrasse o compromisso publicamente assumido com os alvejados em espaço editorial.
Desde então, sofro uma retaliação mesquinha da Folha, que há 14 anos me nega o direito pleno de resposta e de apresentar o ‘outro lado’ em assuntos que me tocam diretamente. Uma regra não escrita do jornal é a de que as queixas e esclarecimentos de Celso Lungaretti sejam relegadas, em quaisquer circunstâncias, ao ‘Painel do Leitor’.
O exemplo mais gritante de desrespeito às boas práticas jornalísticas ocorreu no final de 2004, quando encontrei num relatório secreto militar a prova cabal de que houvera sido falsamente acusado por Marcelo Paiva dez anos e meio antes. Como, naquela ocasião, não houvesse elementos para elucidação plena da questão – ficara minha palavra contra a de Paiva –, o certo teria sido o jornal reconhecer, com idêntico destaque, o gravíssimo erro cometido.
Só restou o jus esperneandi
A resposta da Folha foi me colocar em contato com o responsável pela sucursal do Rio de Janeiro, que prometeu esclarecer o assunto,mas ficou ganhando tempo até que o jornal recebeu uma carta de Jacob Gorender, admitindo que fora levado a encampar uma versão falsa em seu livro Combate nas Trevas e esclarecendo que nenhuma culpa verdadeiramente me cabia no episódio de que eu era acusado.
A Folha, então, me comunicou que considerava a publicação da carta do Gorender no ‘Painel do Leitor’ como satisfação suficiente a mim, dando o caso por encerrado. Qualquer jornalista sabe, entretanto, que o Gorender, com a dignidade que lhe é inerente, corrigiu a informação que ele próprio dera. A Folha, ao publicar o mea-culpa do historiador, não definiu sua própria posição, não admitiu que errara nem se desculpou comigo.
Como não existisse mais a possibilidade de uma ação por danos morais (já prescrevera) e eu não estivesse em condições de custear advogado apenas para fazer valer meu direito de ver a retificação publicada com o mesmo destaque da desinformação injuriosa, só me restou exercer o jus esperneandi em tribunas não pertencentes à grande imprensa (como este Observatório).
O cesto de lixo como destino
E, em meia-dúzia de ocasiões, a Folha me negou espaço adequado para fazer a defesa da memória da luta armada e dos companheiros que dela participaram, embora eu seja o veterano da resistência mais identificado publicamente com esse papel nos dias de hoje.
Minhas contestações irrefutáveis àquilo que o jornal publicara sobre a reparação à família de Carlos Lamarca e ao uso do entulho autoritário, por parte de Elio Gaspari, como argumento para satanizar personagens históricos, foram arbitrariamente sonegadas dos leitores da Folha.
No entanto, os espaços na página de opinião são sempre generosamente concedidos para os porta-vozes da direita mais reacionária e primária.
No último dia 7, foi a vez de Jarbas Passarinho despejar sua bílis na seção Tendência/Debates, insistindo no conceito que os serviços de guerra psicológica das Forças Armada plantaram na opinião pública, de forma goebbeliana, durante a ditadura, de que atos de legítima resistência à tirania equivaleriam a ‘terrorismo’.
Em meu próprio nome e no dos companheiros vivos e mortos que foram caluniados como terroristas, encaminhei ao ombudsman da Folha e ao diretor de redação um artigo com extensão equivalente, refutando o do ex-ministro de Médici e signatário do AI-5.
Por enquanto, seu destino está sendo o de todos os anteriores: o cesto de lixo.
Ou seja, a porta do direito de resposta está aberta, mas é só para constar, pois há 14 anos o guardião impede minha passagem. E, um dia, a fecharão definitivamente.
***
OS TEXTOS EM QUESTÃO
Julgadores facciosos dos direitos humanos
Jarbas Passarinho
Guardo a lição de Franklin Delano Roosevelt quando afirmou que as liberdades fundamentais estão sintetizadas em não ter fome, não ter medo, livre culto religioso e respeito à privacidade das pessoas. A liberdade de não ter medo embasa-se no direito de expressar livremente o pensamento.
As facções que desencadearam a luta armada de 1967 a 1974 (todas comunistas, exceto Caparaó) lutaram pela ditadura do proletariado, segundo a cartilha marxista. Mais recentemente, diziam ter lutado pela democracia, contra o que se insurgiu, indignado com a mentira, Daniel Aarão Reis, ex-guerrilheiro, preso e exilado, hoje professor universitário: ‘Nenhum documento das guerrilhas tratou de democracia’, contestou.
Claro, pois, marxistas, visavam à ditadura do proletariado. De resto, se vencedoras, teriam erigido um regime de partido único, como o fez Lênin. É paradoxal o defensor do partido único invocar direitos humanos se nega a liberdade de expressão e a pluralidade partidária quando no poder.
O ministro Paulo Vannuchi (Direitos Humanos) foi militante da Ação Libertadora Nacional, liderada por Marighella, cujo manual de guerrilha defendia o terrorismo, diferentemente de Che Guevara, que o condenava.
Se o ministro fosse um Sobral Pinto ou um Paulo Brossard, eu teria certeza de sua imparcialidade. Reconheceria que a tortura e o terrorismo são irmãos xifópagos, a primeira, uma praga existente desde priscas eras, presente em todas as guerras, e o segundo, não tão antigo. Afinal, a Constituição trata ambos como crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça.
Já que o ministro faz diferença, teoricamente ao menos, julgo-o um revanchista, do tipo que, derrotado, está hoje no governo de um presidente que não foi guerrilheiro. Antecessor seu na Comissão de Anistia foi outro militante de guerrilha comunista vencida. O objetivo deles tem sido muito claro: queixar-se de torturas na luta armada e esconder o terrorismo que praticaram. Falta-lhes, pois, substância moral para a queixa mesclada de ódio, a despeito dos benefícios já recebidos.
Só em indenizações, já receberam mais de R$ 2 bilhões. Nem um centavo para as famílias dos mortos e mutilados no atentado terrorista no aeroporto de Recife, em 1966, primeiro ato da luta armada que desencadearam. Pensão vitalícia, remuneração por atrasados e emprego livre de Imposto de Renda, tudo foi obtido por um dos terroristas que lançaram carro-bomba contra o quartel do Exército em São Paulo, cuja explosão estraçalhou o corpo de um soldado. Os filhos do povo, os vigilantes de bancos, os seguranças de embaixadores, os oficiais estrangeiros mortos à traição (e até por engano), esses não tinham pais, mães, esposas, filhos.
A emenda constitucional nº 11, de outubro de 1967, revogou o AI-5 e restabeleceu os direitos fundamentais.
Seguiu-se-lhe a anistia, mais ampla que o substitutivo do MDB, que não anistiava Brizola e Arraes. Reconhecendo que houve excessos de ambas as partes, o projeto de lei da anistia incluiu na graça os crimes conexos, assim tidos pelo Congresso em 1979, como a tortura e o terrorismo.
FHC acrescentou as indenizações que privilegiam os derrotados na luta armada. Inverteram o humanitismo de Quicas Borba e o princípio: aos vencedores as batatas. As batatas foram para os vencidos. Millôr Fernandes não pôde conter o chiste: ‘Os guerrilheiros não fizeram guerra, mas um bom investimento’. Bem pagos, cresceu-lhes a ambição de derrogar unilateralmente a anistia.
Imitando Janus, são bifrontes: um rosto é dedicado à tortura, que é o mal, e o outro, ao terrorismo, sobre o qual silenciam. Apareceram ‘juristas’ doutrinando sobre a imprescritibilidade da tortura, mas omitem o terrorismo. Um jurista de esquerda tradicional, indelicadamente, chamou de ‘burocratas jurídicos’ o ministro da Defesa e o advogado-geral da União, que dele discordam. O menosprezo evidencia a marca da ideologia, e não a do saber jurídico.
A propósito, declarou o presidente do STF, ministro Gilmar Mendes: ‘Repudio qualquer manipulação ou tentativa de tratar unilateralmente casos de direitos humanos. Eles não podem ser ideologizados. É uma discussão com dupla face, porque o texto constitucional também diz que o crime de terrorismo é imprescritível’.
Vannuchi, arrogante, exibe o vezo do totalitarismo de que foi militante: ameaça demitir-se (que perda para o país!) se o parecer da AGU, reconhecendo a anistia para os crimes conexos, for mantido. Aprendeu de Lênin e seu centralismo democrático: ‘Quem não estiver comigo é contra mim’. Ousa constranger, publicando declaração do presidente que se refere aos cadáveres de comunistas desaparecidos há 40 anos no clima quente e úmido da Amazônia, e não à anistia.
O presidente João Baptista Figueiredo disse que a anistia não implicava perdão, que pressupunha arrependimento não pedido, mas esquecimento recíproco, em favor da reconciliação da família brasileira. Perto de 30 anos passados, o esquecimento é unilateral. O ódio ideológico, o mais perverso dos ódios, prevalece.
[Jarbas Passarinho, 88, é coronel da reserva. Foi governador do Pará (1964-65) e senador por aquele Estado em três mandatos (1967-74, 1975-82 e 1987-95), além de ministro da Educação (governo Médici), da Previdência Social (governo Figueiredo) e da Justiça (governo Collor)]
***
Aves de mau agouro
Celso Lungaretti
Comentando a declaração da ministra Dilma Rousseff (Casa Civil) de que a tortura é crime imprescritível, o presidente do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes saiu-se com esta: ‘O texto constitucional também diz que o crime de terrorismo é imprescritível.’
Resvalando para a retórica característica das viúvas da ditadura, Gilmar Mendes insinuou que haveria uma equivalência entre a luta armada contra o regime militar e as práticas hediondas cometidas pelos órgãos de repressão política: ‘Direitos humanos valem para todos: presos, ativistas políticos. Não é possível dar prioridade a determinadas pessoas que tenham determinada atuação política. Direitos humanos não podem ser ideologizados, é bom que isso fique claro.’
Também seria bom que ficasse bem claro para Gilmar Mendes que, desde a Grécia antiga, é reconhecido o direito que os cidadãos têm de resistirem à tirania.
Então, a ninguém ocorre qualificar de ‘terroristas’ os membros da Resistência francesa que descarrilaram trens, explodiram pontes e quartéis, justiçaram colaboracionistas etc., atuando com violência incomparavelmente superior à dos resistentes brasileiros. São, isto sim, merecidamente reverenciados como heróis e mártires da França.
A situação era a mesmíssima no Brasil, onde um grupo de conspiradores militares obteve sucesso em sua segunda tentativa (1964) de usurpar o poder, aproveitando bem as lições da primeira (1961) para corrigirem os erros cometidos.
Seus governos ilegítimos sempre sufocaram as diversas formas de resistência à tirania mediante a utilização de força maior do que aquela que se lhes opunha, terminando por impor o terrorismo de Estado sem limites a partir da assinatura do Ato Institucional nº 5.
É claro que, ao enfrentar essas bestas-feras, os resistentes daqui incorreram em alguns excessos, como sempre ocorre nas lutas desse tipo, travadas em condições de extrema desigualdade de forças. À Resistência francesa também acontecia de errar o alvo ou exagerar na dose.
Mas isto não basta para que uns e outros sejam tidos como ‘terroristas’. O termo, historicamente, designa grupelhos isolados que tentavam, com tiros e bombas, intimidar os governantes, disseminando o caos.
E não, de nenhuma forma, os combatentes que recorreram à propaganda armada para levantar o povo contra governos tirânicos, como era o óbvio objetivo da resistência ao nazi-fascismo na Europa e ao totalitarismo de direita no Brasil.
O presidente nacional da OAB, Cezar Britto, acaba de vir ao encontro desta posição, afiançando a legitimidade de guerrilhas para derrubar ditaduras como a de 1964/1985: ‘Entendemos que a manifestação contra governo ditatorial é legítima, faz parte da sobrevivência de um povo. A ONU tem admitido que o fato de resistir a uma ditadura não é ato terrorístico.’
O que está na Constituição
‘Constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático’, reza o inciso 44 do Artigo 5º da Constituição Federal.
Foi no que se baseou Gilmar Mendes para repetir a cantilena da extrema-direita, colocando no mesmo plano alguns atos desesperados de resistentes e as torturas infligidas a dezenas de milhares de brasileiros.
É chocante o desconhecimento histórico daquele que preside o mais alto tribunal do país!
A ordem constitucional foi quebrada no malfadado 1º de abril de 1964 e hibernou durante 21 anos. O que vigorava era a desordem totalitária do AI-5, uma licença para os militares perseguirem, trancafiarem, torturarem e assassinarem os opositores como bem lhes aprouvesse.
Não se pode falar em Estado democrático sem respeito às garantias individuais, equilíbrio entre poderes e eleições livres para todos os cargos.
Então, por terem golpistas vitoriosos detonado a ordem constitucional e esmagado o Estado Democrático sob tanques de guerra, todos os cidadãos brasileiros tinham não só o direito, como até o dever, de resistirem a eles.
Um presidente do STF midiático e que, como papagaio, repete falas dos carrascos, mostra-se indigno da posição que ocupa. Deveria renunciar ou ser expelido, como o corpo estranho que se tornou numa instituição que deve primar pela discrição e compostura.
Quanto ao ex-ministro da ditadura Jarbas Passarinho, está procedendo exatamente como Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-comandante do DOI-Codi/SP e torturador reconhecido como tal pela Justiça brasileira: caluniando as vítimas para tentar justificar o que de errado fez no passado.
Vale lembrar que, quando deu um cheque em branco para os verdugos, como signatário do AI-5, Passarinho nem sequer se preocupou em dourar a pílula: ‘Sei que a V. Exa. repugna, como a mim e creio que a todos os membros deste conselho, enveredar pelo caminho da ditadura. Mas às favas, senhor presidente, todos os escrúpulos de consciência!’
Por mais que esperneie, é esta a imagem que deixará para a História.
******
Jornalista, escritor e ex-preso político, mantém dois blogs: aqui e aqui