A pequena imprensa está sob ataque. Não do público, que continua considerando o jornalismo que aqui se produz como algo de extrema confiabilidade, conforme atestam pesquisas de opinião recentes. Os ataques vêm de setores autoritários e antidemocráticos, que diante do noticiário sentem-se ameaçados – como Ali Kamel, diretor de jornalismo da Rede Globo de Televisão, que assim escreveu no Globo (7/8/2007) artigo sob o título de ‘A grande imprensa‘:
‘A grande imprensa está sob ataque. Não do público, que continua considerando o jornalismo que aqui se produz como algo de extrema confiabilidade, conforme atestam pesquisas de opinião recentes. Os ataques vêm de setores autoritários e antidemocráticos, que diante do noticiário, sentem-se ameaçados’.
E mais, continua Ali Kamel, a última lenda de nossa grande imprensa:
‘Esses setores [os autoritários e antidemocráticos] consideram que só é notícia aquilo que, em nenhuma hipótese, atrapalha os seus planos de poder. Não importa que alguns acontecimentos lhes sejam embaraçosos; importa que ou não sejam noticiados ou sejam levados ao público de tal forma que o efeito, para eles, seja positivo ou neutro. Já disse uma vez: isso não seria jornalismo, mas propaganda.’
Notem, se algum anjo bom retirar os signos de transcrição lá no alto, poderíamos com mais propriedade escrever:
Esses setores, os autoritários e antidemocráticos, consideram que só é notícia aquilo que, em nenhuma hipótese, atrapalha os seus planos de poder. Não importa que alguns acontecimentos lhes sejam embaraçosos; importa que ou não sejam noticiados ou sejam levados ao público de tal forma que o efeito, para eles, seja positivo ou neutro. Já disse uma vez: isso não seria jornalismo, mas propaganda.
E a seguir, em lugar de frases altissonantes, transcreveríamos fatos, acontecimentos da história recente do Brasil, que o jornalismo da Rede Globo de Televisão – a bem da verdade, não só ela – desconheceu, distorceu, ou fez uma versão de pura propaganda. A saber, sem muita pesquisa.
Conspirações que não existem
O tratamento concedido a Lula em todas as eleições – para nada falar sobre a competente, de um ponto de vista de crime bem executado, edição do debate com Collor, lembramos o último, em 27/10/2006; quando o presidente aparecia, o zoom se afastava do seu rosto, e seu espaço era dividido com o adversário que o rondava pelas costas; e como se dirigia o apresentador do Jornal Nacional ao escolhido pela maioria do povo? ‘Candidato Lula, toque ali no quadradinho do nosso painel…. Candidato Lula, falta só mais um quadradinho’. A impressão que ele imprimia para os milhões de eleitores era a de se dirigir a uma criança analfabeta. Isso escrevemos de memória. Mas qualquer pesquisa apontará o documentário Muito além do Cidadão Kane, que pode ser visto em aqui ou aqui. Ali (advérbio de lugar, não um nome) se mostra o periodismo da Rede Globo que se transformou em propaganda.
No entanto, importa mais aqui a retórica e seu uso de bumerangue no artigo do cidadão Kamel.
‘Costumam seguir o seguinte padrão: mentem, atribuem à grande imprensa coisas que ela não fez e denunciam conspirações que não existem. Sempre num tom indignado, dourando a grita com defesas ‘apaixonadas’ da liberdade de expressão e do que chamam de democratização da mídia. Um disfarce.’
O que depende de muitos é independente
Ora, se no parágrafo acima substituirmos ‘grande imprensa’ por ‘pequena imprensa’, nada será mais preciso. E se por pequena imprensa quisermos significar aquela que se expressa no mundo da web, então o preciso atingirá o seu modo mais justo. Isso porque os blogs, os sítios, são caluniados pelos antigos donos da informação como territórios de – observem a gradação – amadores, irresponsáveis, anarquistas, terroristas, novos bárbaros porque, terrível, não lêem mais as brilhantes análises em papel e, pior, deixaram a passividade de antes. O que é, sem dúvida, uma conspiração contra a boa, a melhor democracia dos antigos periodistas. Sempre num tom indignado, dourando a grita com defesas ‘apaixonadas’ da liberdade de expressão… Um disfarce. O disfarce que cai – um bom título para um editorial à moda antiga – no parágrafo a seguir:
‘É uma tautologia, mas, na atual conjuntura, vale dizer: o jornalismo só é livre e independente quando não depende de nenhuma fonte exclusiva de financiamento. Quanto mais variadas forem as fontes de recursos que sustentam um jornal, uma revista, um portal de internet ou uma emissora de rádio e televisão, mais livres e independentes serão esses veículos. O leitor pode fazer o teste. Veja os anunciantes da grande imprensa e verifique: a variedade é tanta que o veículo não depende, nem de longe, de ninguém isoladamente para sobreviver.’
Belo, lindo e revelador. Encantador. Em que escola aprendeu a pensar o poderoso diretor? Parece que a burguesia já não produz quadros como antes. Talvez ele não saiba que em um jornalismo livre não cabe mais qualquer adjetivo. Porém, se a isto ele acrescenta ‘independente’, e olvidamos a doce palavra ‘livre’, nada seria mais desastroso que a definição que ele dá a tal fenômeno: aquele que não depende de nenhuma fonte exclusiva de financiamento.
Como dizíamos, encantador. Primeiro porque se financiam – é da natureza do verbo financiar – as empresas sobre as quais existe alguma superioridade ou ordem, por parte de quem financia. Até onde se entende, a imprensa recebe anúncios, propaganda, como uma troca de serviços, o que não é bem um financiamento. Segundo porque ali (advérbio) há um transporte do sentido de independência editorial para aquele que não depende somente de uma fonte. Ou seja, ele substitui a escravidão a um indivíduo pela escravidão a todos. Aquele que depende de muitos é independente. Perfeito e encantador. Adiante.
Sem perder o ar de respeitabilidade
‘Portanto, livre mesmo, só a grande imprensa. Só ela tem os meios para investir em recursos humanos e tecnológicos capazes de torná-la apta a noticiar os fatos com rapidez, correção, isenção e pluralismo, sem jamais se preocupar se o que é noticiado vai ser bom ou ruim para este ou aquele cliente, para este ou aquele governo.’
Viva. Ali, acima, resume tudo que a grande imprensa não faz. Ou melhor, pode até ser verdade, se definirmos bem as palavras, as expressões. Por ‘recursos humanos’, entenda-se muitos (many and many, muchos y muchos) profissionais adestrados, amestrados, sem espaço para qualquer coisa ou matéria que lembre uma crítica funda à realidade. Especialistas, quando conquistam o posto de autores, em reportagens sobre o possível e o autorizado. Mais: na frase ‘noticiar fatos com rapidez’, por favor, defina-se o que é fato, e depois o que é rapidez para os gigantescos paquidermes que darão a notícia do fim do mundo amanhã, se sobreviverem. Isto, bem considerado, se não ferirem os interesses do anunciante do Apocalipse. E por ‘correção, isenção, pluralismo’ etc. etc., melhor nem comentar. Adiante.
‘Na cobertura da tragédia da TAM, a grande imprensa se portou como devia. Não é pitonisa, como não é adivinha, desde o primeiro instante foi, honestamente, testando hipóteses, montando um quebra-cabeça que está longe do fim.’
Mas é claro. Em qualquer tragédia, e nesta específica das mortes do avião da TAM, a grande imprensa se portou e se comportou como devia: com uma frieza e oportunismo de papa-defuntos. Claro, ela não é pitonisa, e se o fosse prepararia edições especiais e bem montadas sobre os próximos cadáveres. O obituário seria a melhor seção, patrocinada pelas ações na Bolsa de Valores dos concorrentes falidos. Claro, e como essa condição está longe (alô, alô, meteorologia, avise com antecedência de 90 dias onde será o próximo tsunami), o público deve servir de experiência para as mais calculadas hipóteses. Sempre apresentadas com o modo mais honesto, o que vale dizer, sem jamais perder o ar de respeitabilidade.
O prazer e dever de informar
‘É assim aqui, é assim em todas as democracias. [Sem dúvida, principalmente nas que têm modelo na dos Estados Unidos.] Quando do furacão Katrina, a imprensa americana, num continuum, testou muitas hipóteses: noticiou que aquela era uma tragédia anunciada, mostrou que houve cortes federais para obras urgentes nos diques que se romperam, denunciou a inépcia do governo no socorro imediato às vítimas.’
Bravo. Em que mundo mora e vive o poderoso editor de jornalismo da Rede Globo de Televisão? Será que a sua cabeça sofre o mesmo processo de edição que os seus telejornais? Qualquer pesquisa, diria até, qualquer aleatória pesquisa, apontaria que as denúncias dos primeiros dias, na imprensa dos Estados Unidos, cederam logo lugar às fotos patrióticas da Guarda Nacional a pôr ordem na casa. O governo e a ordem reagiram – esse era o tom da imprensa norte-americana. Qualquer pesquisa mostraria uma foto, da Associated Press, com a legenda: ‘Negro acaba de saquear uma loja’, enquanto na France Presse os brancos apenas conseguiam comida.
Paciência. A viver na sua redoma, na bolha e no aquário que os seus pares e interesses criaram, conclui Ali Kamel: ‘Porque aqui, ao contrário de lá [nos Estados Unidos] há quem queira que a informação esteja a reboque de projetos de poder.’ É fato. Voltamos então às frases-bumerangues. A Rede Globo não possui desejo de informação a reboque de um projeto de poder, sabemos todos… A Rede Globo informa pelo prazer e dever de informar. Se assim não fosse, ela não existiria.
Moral da história: as pessoas não dizem o que pensam. E quando estão em um alto cargo, nem mesmo pensam no que escrevem.
******
Jornalista e escritor, Recife, PE