Em 1994, o piloto Ayrton Senna morreu num trágico acidente, em Imola. Foi o primeiro contato de meus filhos, então com oito e nove anos, com a morte de uma pessoa pública. Toda a máquina da Globo – e também de outras emissoras, mas a máquina da Globo era, e ainda é, a maior, e a Globo tinha, e ainda tem, a exclusividade de transmissão da Fórmula 1 – foi colocada à disposição daquele triste fato, que chegava com excepcional força aos espectadores por ser um ídolo jovem, bem-sucedido e que jamais tinha decepcionado o seu público. Era o personagem do bem.
Meu filho, Tomás, cansou-se logo, apesar de ter ficado autenticamente comovido com a morte de Senna. Minha filha, mais chegada a um drama, mergulhou aos prantos no espetáculo montado em torno daquela fatalidade. Eu, como jornalista, não sabia muito o que fazer: a máquina de moer emoções havia sido acionada contra a minha própria filha e eu não sabia se desligava a televisão ou deixava que ela vivesse o que era também a sua primeira experiência com um drama coletivo. Deixei. E fiquei orgulhosa da Isabel quando ela limpou as lágrimas, levantou da cadeira, desligou a televisão e, por fim, disse: “O que eles estão fazendo com ele?” Tradução: o que a televisão fez com o Senna, ao invadir cada detalhe de sua morte, cada pedaço de sua vida, cada ferimento, cada dor de sua família, cada lágrima capturada pela câmera? Engraçado, mas percebi que ela achou que seu ídolo fora aviltado e que ela foi manipulada.
Espetáculo e televisão são duas coisas inseparáveis, é fato. A imagem é dúbia: ao mesmo tempo em que documenta, é capaz de envolver, emocionalizar e confundir. A imagem não fala por si só. Com uma voz ao fundo, entrevistas escolhidas, cenários de pavor, palavras de esperança, é capaz de construir uma estória, a partir de dados da realidade, com o enredo de uma novela, ou de um filme. Tirar lágrimas ou convencer o público que, acreditando seriamente estar diante de uma realidade pura, vê-se na desgraça total ou chega à redenção.
A redenção da classe média
Se a minha filha tivesse nove anos no último domingo, teria visto o Big Brother da Rocinha durante todo o dia, no padrão Globo de televisão, até se perguntar: “O que estão fazendo com eles?” Talvez ela precisasse de uma pergunta mais elaborada do que essa para expressar uma situação em que o direito inalienável do cidadão – a segurança, o direito de ir e vir, a inviolabilidade de sua moradia, educação, saúde e todo o grande e generoso artigo 5º de nossa Constituição – foi transformado num épico onde o que importa não é o reconhecimento de que o Estado paga o que deve, mas a ocupação cenográfica de morros e vielas por 3 mil homens, entre Polícia Civil, Polícia Militar e Polícia Federal, além de 194 fuzileiros navais, 18 veículos blindados, quatro helicópteros da PM e três da Polícia Civil. Os homens de farda não são os agentes de uma política pública de segurança, mas a redenção. Ao final do espetáculo, o que estava em jogo não eram os direitos, nem o reconhecimento de que, enfim, o Estado entendeu que segurança pública é uma política pública integrada com políticas sociais. A TV tinha eleito um herói, o secretário de Segurança Pública do Rio, Mariano Beltrame; coadjuvantes, os policiais; e figurantes, os moradores da Rocinha, do Vidigal e da Chácara do Céu.
Nesse cenário, a contenção das favelas, via a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), torna-se a redenção também da classe média que mora morro abaixo e que certamente elegerá (no sentido estrito e figurado) o governador Sérgio Cabral e seu secretário Beltrame como aqueles que levaram a paz para os morros e, principalmente, para fora deles. E que vão tornar o Rio mais seguro para as Olimpíadas e para a Copa do Mundo.
Salvação, não, mas volta à normalidade
Antes do espetáculo, uma história cruel de como bandidagem e miséria se juntaram nas favelas foi desconhecida; a saga de como armas e justiça com as próprias mãos ocupou o lugar do Estado em cada núcleo de pobreza foi esquecida; não se falou em como, primeiro, os bicheiros exerceram o papel de Poder Executivo, polícia e justiça em áreas que viraram feudos depois transferidos para traficantes e – quando estes eram expulsos – por milicianos, egressos da própria polícia. A história que a televisão esqueceu de contar é a de pessoas que tiveram de obedecer a duas leis (a da cidade e do morro), incorporaram a violência à sua rotina, conviveram com drogas, viram seus filhos tornarem-se “aviões” do tráfico e serem vitimados pela violência e a droga antes de chegarem à vida adulta.
O épico da Globo esqueceu a saga dos pobres da favela. E do imenso descaso da opinião pública para com crianças que estavam em idade de estudar e não estudavam, precisavam brincar para ser crianças e não brincaram; e de adultos reduzidos à desumanização da doença, da fome e da falta de cidadania – pelo menos até que isso se traduzisse em violência morro abaixo.
A entrada do poder público na Rocinha para garantia dos direitos fundamentais de seus moradores não é o espetáculo. É o reconhecimento do que lhes era devido. Não deve ser visto como a salvação, mas a volta à normalidade.
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[Maria Inês Nassif é colunista política e editora da Carta Maior em São Paulo]