Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O escândalo no varejo

Entrou no terreno do varejo a atividade da imprensa brasileira diante da última safra de denúncias de corrupção envolvendo figuras notórias da República. Enquanto a Folha de S.Paulo segue aceitando sem maiores exigências o papel de interlocutora preferencial do deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), dando o aval de sua credibilidade ao polêmico parlamentar fluminense, o Estado de S.Paulo e O Globo preferem destacar o esforço do presidente Lula da Silva para manter o mais longe possível do Planalto a lama que escorre do Congresso. Mas ninguém oferece ao leitor uma plataforma a partir da qual se possa entender o que de fato acontece dentro dos muros do poder.

O Globo fez um bom trabalho no fim de semana, com o infográfico intitulado ‘O jogo da CPI’, que permite ao leitor memorizar rapidamente a cronologia do escândalo mais recente, mas não avançou além da retrospectiva. O Estadão procurou equilibrar as afirmações do parlamentar petebista com uma edição na qual dá o crédito à Folha pela origem das denúncias, mas não avaliza as declarações feitas por Jefferson ao jornal concorrente.

Enquanto isso, Veja requenta material publicado no início de maio, sob título de gosto duvidoso (‘O mensalão da perua’), no qual acusa a ex-prefeita de São Paulo Marta Teresa Smith de Vasconcellos Suplicy de haver mantido durante seu governo um esquema de mesadas para vereadores em troca de apoio.

Não se percebe em pelo menos um parágrafo do que foi publicado no último final de semana o resultado de qualquer esforço de investigação, ou um fio condutor que ajude a opinião pública a entender em que ponto o escândalo envolve efetivamente o núcleo do governo federal ou se o caso relatado se restringe a alguns de seus aliados.

Destrinchado de alto a baixo, o noticiário é pouco mais do que um bate-boca entre acusador e acusados, palpiteiros de um lado e do outro da arena política e eventuais beneficiários de uma crise institucional, até aqui improvável.

Cheque em branco

A estratégia de Roberto Jefferson é primitiva e pode ser comparada a outras disputas que eventualmente ganham a atenção da mídia, como a briga da fabricante de refrigerantes da marca Dolly contra a multinacional Coca-Cola. O denunciante sempre conta com a vantagem oferecida por certas práticas viciosas da imprensa, como a disposição permanente para atirar primeiro e perguntar depois.

Apanhado na malha dos ‘arapongas’ em ação nos Correios, Jefferson dosa inteligentemente cada pá de lama que oferece aos seus atentos interlocutores, à espera de sinais de socorro de seus aliados no governo. Conta com a receptividade passiva da mídia que escolheu para veicular suas jogadas.

Até o início da semana passada, o personagem principal desse capítulo desairoso da nossa história afirmava – e suas ameaças eram amplificadas generosamente pela imprensa – que tinha novas gravações para alimentar o escândalo. Ao mesmo tempo, mandava sinais ao Planalto esperando a cobertura do ‘cheque em branco’ que considerava assegurado por seu apoio à eleição de Lula.

No meio da semana, como sinal de boa vontade, mandou dizer que não tinha mais o que oferecer aos jornalistas. No sábado, como não lhe veio o socorro esperado, mas a ameaça do isolamento político, recheou ainda mais o bolo de lama.

Refém da fonte

Sem fontes próprias de informação, os jornais seguem costurando a cada dia uma colcha de retalhos que não permite ao leitor avançar além de suas próprias premissas: se tende a apoiar o governo do PT, pode ler no noticiário que o partido do presidente foi envolvido em uma disputa de quadrilhas.

Se é oposicionista, pode depreender, da leitura dos diários, que o governo de Lula afunda num infinito mar de lama. Se anda desapontado com a política, o cidadão pode chegar à conclusão de que a democracia é uma droga mesmo, que todos os políticos são iguais e bom mesmo era no tempo dos militares. E não faltam os chacais de sempre, dispostos a soprar aqui e ali, em blogs e boletins, que é isso mesmo.

Esse é o risco dessa cobertura dirigida de fora para dentro das redações, quando o editor, sem recursos para investigações independentes, fica à mercê do relacionamento com um informante que por acaso é também o principal suspeito.

Refém dessa fonte única e extremamente comprometida, a imprensa se iguala, em autoridade moral, ao personagem a quem oferece credibilidade, sem pedir em troca nada mais do que o acesso a um trecho ou outro de gravações que, diante da Justiça, podem afinal não ter qualquer valor.

Enquanto jornalistas e personagens trocam figurinhas, o leitor fica com a sensação de que estão lhe escondendo o melhor da história.

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Jornalista