Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O escritor, do impresso ao online

Esta não é uma resenha. É apenas um mote para que consideremos as relações do escritor com a mídia, da mídia com os livros, especialmente com a literatura.

A psicanalista e escritora Betty Milan, colunista da revista Veja na Internet, acaba de publicar Quando Paris Cintila (Editora Record, 149 páginas). É o segundo em que a capital francesa, tão presente em seus livros, aparece no título. O outro foi Paris não acaba nunca, publicado em 1996 e traduzido para o chinês em 2005.

O título de agora lhe veio de uma visita à catedral de Notre Dame, onde entrou quase por acaso. Mas, como os surrealistas nos ensinaram, também o acaso tem suas leis, que entretanto desconhecemos.

Notre Dame (Nossa Senhora, em francês) tem este nome em homenagem à mãe de Jesus. Sua construção, iniciada em 1163, somente foi concluída em 1330. Durou 167 anos, mais de quarenta mandatos ininterruptos nos regimes democráticos! Mas, na atual democracia brasileira, como sabemos, é norma que os mandatários percam muito tempo desmoralizando os antecessores. E assim, mesmo quando fazem muito, fazem menos do que poderiam fazer se abandonassem o costume de olhar sempre para trás.

Obras como a Catedral de Notre Dame são de quem, depois de cuidar de miudezas indispensáveis – água, alimentação, estradas, pontes, esgotos, postos de saúde etc. – pensa grande. Não se pode pensar grande sem cultura. Não apenas a cultura letrada ou escolar. Quem fundou a primeira universidade portuguesa foi um rei quase analfabeto, D. Dinis, o Lavrador, entretanto poeta, autor de 138 cantigas: 76 de amor, 52 de amigo e dez de maldizer.

Prova de matemática

Lembrei-me do rei português porque uma das principais acusações feitas a Jesus era de que ele queria ser rei. Foi por isso que Pilatos mandou fazer a célebre inscrição em grego, latim e hebraico: ‘Jesus Nazareno, Reis dos Judeus’, depois abreviada para INRI apenas, hoje encontrável nos crucifixos. E também porque Betty Milan dá muito valor à amizade, tema preferencial de outros livros seus, como o infantil A Cartilha do Amigo e o romance O Amante Brasileiro.

A escritora aproximou-se do altar. O padre lia um fragmento da Paixão Segundo São Lucas. É o trecho em que os sumos sacerdotes e os escribas, duas castas poderosas entre os judeus, então dominados pelos romanos, estão delatando Jesus a Pilatos:

‘Encontramos este homem semeando a desordem. Ele impede os outros de pagar impostos e afirma que é o Rei Messias’.

Betty Milan está ouvindo o padre, mas enquanto isso presta tenção às ‘duas rosáceas do transepto vistas à luz do ocaso e dos lustres de lâmpadas que simulam velas, tão irreais quanto as noites claras de luar’. Prossegue: ‘Ainda que Cristo só tivesse nascido para inspirar os homens que, séculos depois, fizeram os vitrais de Notre Dame, ele mereceria ser chamado de Salvador, porque com arte a gente se salva’. E dá o primeiro passo do novo livro: ‘Bastou ter olhado as rosáceas e ter tido a idéia de escrever um texto cujo título seria Quando Paris cintila para sair da igreja salva, feliz’.

Não é em vão que a França é a nação do livro, como reconheceu a Unesco. Em outra passagem, está escrevendo na biblioteca do bairro onde mora, em Paris, quando é abordada por um estudante que se prepara para uma prova de matemática: ‘Você faz o quê?’. Ao ouvir que ela está escrevendo um romance, pergunta se é o primeiro. Betty responde: ‘Não, mas nunca é fácil’. E ele diz: ‘Você vive tardes proustianas!’.

Territórios ocupados

Paris cintilou naquela manhã para Betty Milan. E ela fez um belo livro sobre viagens. São crônicas que se passam na França, na Índia, no Brasil etc. Eis outro momento: sentada num banco de jardim, em frente a uma mesquita, um engraxate lhe pede que, em vez dos cinco dinares, lhe deixe os outros cinco que seriam o troco: ‘Meu filho precisa de uma prótese para não andar de muleta’. Betty conclui: ‘O valor do dinheiro não é objetivo, dez menos cinco são cinco para mim e zero para ele, que tem urgência de ver o filho andando’.

Tomara que este livro seja muito lido, é uma lufada de sensibilidade que exalta a compaixão, hoje tão rara, e é sobretudo muito bem escrito.

Mas temo que seja lido por poucos. E mesmo aqueles escritores, como Betty Milan, que ampliam seu público, escrevendo colunas na imprensa, devem sentir inquietação ao lerem profecias como a da prestigiosa revista New Yorker (31/3/2008), repetindo o que dissera The Economist em setembro de 2006: ‘Os jornais estão tecnicamente mortos’.

Os jornais americanos perderam 42% de seu valor nas bolsas. O New York Times perdeu 54% desde 2004. De acordo com revelações feitas por Alan Mutter, empreendedor de mídia, a Eric Alterman, autor da matéria (‘Out of Print: the death and the life of the American newspaper‘), apenas 19% das pessoas entre 19 e 34 anos deram uma olhada nos jornais no último mês, e nos EUA, a idade média do leitor de jornais impressos está em 55 anos. E está subindo. No artigo é lembrada a profecia de Philip Meyer: os jornais impressos vão desaparecer no ano 2050. Vai salvar-se quem migrar para a internet. Mas, por enquanto, as receitas online ainda não compensam as perdas com a queda de circulação e diminuição dos anúncios.

Espero que, sem prejuízos à editora, porque o público é outro, a escritora permita que este livro ou partes dele possam ser lidas também em seu site.

Tempos de crise para a leitura impressa, como este em que vivemos, exigem gestos arrojados, principalmente de editores e escritores. Os leitores têm que ser alcançados onde estão. É mais do que hora de inverter o caminho trilhado: os escritores vinham às livrarias. Vêm menos agora. Mesmo quando querem o livro impresso, mandam buscar sem sair de casa, pela internet ou pelo telefone, evitando a violência das ruas, o caos do trânsito, a tristeza das livrarias, sobretudo para quem escreve no Brasil.

As livrarias parecem territórios ocupados pelo inimigo invasor. A literatura brasileira, reconhecidamente uma das mais importantes do mundo (para nós, a mais importante), merece, quando muito, um cantinho de uma estante lá no fundo, como se fosse clandestina.

Todos estão perdendo com isso.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de pesquisa e pós-graduação; seu livro mais recente é o romance Goethe e Barrabás (Editora Novo Século); www.deonisio.com.br