Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O Estado de S. Paulo

LUTO
O Estado de S. Paulo

Longo aplauso na despedida do mestre do teatro Paulo Autran

‘O corpo do ator, diretor e produtor Paulo Autran, morto anteontem aos 85 anos de idade em decorrência de câncer de pulmão e enfisema pulmonar, foi recolhido para cremação ontem às 12h15, no Crematório de Vila Alpina. Acompanharam a cerimônia, segundo a Polícia Militar, cerca de 400 pessoas. Autran foi velado durante toda a noite no Salão Nobre da Assembléia Legislativa de São Paulo, no Ibirapuera, e levado pouco depois das 11h15 ao crematório.

O velório contou com a presença de vários atores e personalidades que conviveram com Autran ao longo de suas carreira e vida. Entre eles, o ator e dramaturgo Juca de Oliveira, que fez um discurso de despedida – chamando Autran de mestre e atribuindo a ele a responsabilidade pelo fato de a profissão ser hoje mais respeitada e valorizada. Ainda na Assembléia, na última homenagem, Autran foi longamente aplaudido pelos presentes.

No dia 1º de outubro, Paulo Autran emocionou ao subir ao palco para receber o prêmio Artista Prime do Ano, promovido pela revista Bravo!, em São Paulo. Na ocasião, de cadeira de rodas e auxiliado por sua mulher, Karin Rodrigues, ele disse, com voz embargada, que mesmo sendo uma pessoa muito controlada – que só chorava quando o personagem pedia -, naquela noite estava ´muito difícil` conter as lágrimas.

CIGARRO

Segundo Karin, que viveu com Autran por 30 anos, o ator lhe pediu que contasse às pessoas que foi o cigarro que o matou. ´Isso porque diziam: ´Ah, o Paulo Autran fuma e tem 85 anos.` Mas ele não conseguiu parar de fumar.` Segundo ela, o ator chegou a consumir dois maços por dia. Depois do diagnóstico de câncer, reduziu o consumo, mas não conseguiu parar.

Ele já havia declarado, há cerca de um ano, sobre o hábito de fumar: ´Fumo desde os 23 anos de idade. Deveria ter parado há 61 anos, no dia em que comecei.´

´Ele falou: ´Que bom que estou indo embora´, contou Karin. ´Ele queria ir porque não conseguia mais respirar, e sem respirar, é difícil viver.´

CLÁSSICO

´Ele era um educador, um clássico, não essa bandalheira que se vê hoje em dia´, comentou durante o velório o diretor de teatro Gerald Thomas. ´Era um ator com quem se podia discutir a razão da queda do Império Romano e ao mesmo tempo lutava pela existência do teatro contemporâneo. Estava em todos os espetáculos, de diretores jovens e velhos. Para mim ele não morreu, está só interpretando outro papel.´

Karin também lembrou que Autran fez teatro em uma época em que não havia incentivos fiscais para a cultura. ´Fazia o espetáculo, saldava a dívida e seguia adiante.´

´Mesmo doente, quando estava em cena, ele parecia ter no máximo 50 anos, tanto que se alimentava do teatro´, disse o autor de novelas Silvio de Abreu.’

 

TROPA DE ELITE
Daniel Piza

O fundo da questão

‘Quanto mais polarizado e passional o debate, mais escapa do fundo da questão. É o que está acontecendo (se me permite o gerúndio) com o filme Tropa de Elite agora. Tanto os que o atacam quanto os que o defendem fazem a mesma confusão entre realidade e cinema. Não, o filme de José Padilha não é fascista; quem se aproxima muito da mentalidade fascista é o Bope, o batalhão especial retratado por ele. E não, o filme não é uma apresentação isenta do modo de pensar do Bope, encarnado pelo capitão Nascimento que Wagner Moura faz tão bem; há uma série de escolhas de roteiro, edição e música que causam um resultado insatisfatório para uma obra de arte que se pretende realista.

O filme é intenso, revela um microcosmo pouco conhecido e tem muitas qualidades além das atuações (a de Milhem Cortaz com menção especial), portanto vale a pena ser visto. Mas acho melhor na primeira metade, em que vemos a dinâmica poderosa do ´sistema` – o esquema de propinas e favores entre policiais e criminosos que se espalha de tal modo que se torna uma cultura interna, difícil de erradicar justamente por parecer normal. Nesse contexto, o Bope se diz incorruptível e só vê como solução a ´guerra´, a truculência nas favelas. Nascimento, porém, não agüenta mais sua rotina e promete à mulher grávida que vai deixar a tropa de elite, tão logo escolha o sucessor ideal entre um aspirante que tem coração e outro que tem cabeça.

Aqui começam os problemas. A defesa do filme diz que Nascimento é mostrado em crise, com síndrome de pânico, e não como um herói, um boina verde ou integrante da SWAT pronto a fazer o serviço que os outros não fazem por falta de caráter e estratégia. Mas qual a natureza de sua crise? É muito mais o estresse de viver num conflito permanente do que uma autocrítica, do que a revisão íntima de seus valores. A essa altura do filme, vemos o narrador e protagonista submetendo os candidatos do Bope a uma série de humilhações detestáveis. A ´lógica` é que só mediante tais sacrifícios físicos é que um ser humano pode se tornar incorruptível, pode resistir às tentações do sistema. Nascimento não expõe uma palavra de dúvida sobre tal tese.

Não à toa, ele termina o filme satisfeito com o que fez e decidiu, com a conciliação de contrários que obteve com tal método. A pergunta então passa a ser: o filme perderia a força que tem – justamente por partir de um ponto de vista único – se trouxesse aqui e ali uma cena ou um diálogo que fosse um contraponto razoável ao pensamento do capitão? Além disso, o ritmo acelerado, como aconteceu antes em Cidade de Deus (e foi reconhecido por Fernando Meirelles), tira o drama de algumas cenas que deveriam ilustrar o aspecto terrível daquele personagem; a ação se sobrepõe, ao som de rock, e com ela o espectador é induzido a torcer para que Nascimento espalhe a Morte.

Na sessão a que fui, jovens abonados vibravam até mesmo com as cenas de tortura, agora imitadas em vídeos do You Tube. Padilha não pode ser culpado por essa demonstração de pulsões agressivas, de instintos vingativos que ditadores gostam tanto de manipular. Um artista precisa estar ciente de como seus signos podem vir a ser interpretados (não ser como o arquiteto que faz formas de frutas e depois reclama dos apelidos dados aos prédios), mas não é responsável pela insensibilidade dos intérpretes. Isso não significa, porém, que seu filme seja perfeito simplesmente porque aborda o tema por um ângulo só. Arte não é moral nem imoral, mas lida com moralidade.

A repercussão emotiva a respeito do filme, afinal, não tem a ver apenas com ele. Tem a ver com um momento histórico em que a lenta melhora do Brasil é insuficiente para reduzir de modo expressivo o estoque da dívida social, da imensa carência de renda e justiça, de problemas como a violência urbana. Basta ver a polêmica criada em torno do artigo de Luciano Huck na Folha. O texto, um tanto ingênuo ou demagógico em seu tom ´Faço o que posso pelo Brasil, mas roubaram meu Rolex´, teve réplicas como a de um leitor que disse que ele tem mesmo de abrir mão do relógio para que haja um país melhor; e a do escritor, rapper e dono de grife Ferrez, que disse que ele deve agradecer por não ter sido morto. Vamos confiscar os Rolex e chegar ao Primeiro Mundo?

O debate sobre segurança nesta democracia continua, enfim, opondo a turma do ´bandido bom é bandido morto` à do ´seja marginal, seja herói´. Enquanto isso, os políticos de todos os partidos não param de sugerir que uma propina justifica a outra, tal como os personagens de Tropa de Elite. No mundo de Renan Calheiros, os extremos afundam juntos.’

 

DUAS CARAS
Mário Viana

O ciúme, esse monstro de olhos verdes…

‘Foram cenas de ciúme explícitas e inesperadas. Explícitas, porque reveladas num blog, logo eram repercutidas pela imprensa. Inesperadas, porque partiam de um dos mais (merecidamente) festejados autores de telenovelas do País. Sentindo-se atingido por uma baixíssima audiência na primeira semana de Duas Caras, Aguinaldo Silva ligou o ventilador e espalhou bronca. Espetou a Globo, que não teria dado valor à estréia, e deixou nas entrelinhas uma mágoa com a atenção recebida por Gilberto Braga. Como quase toda cena de ciúme, a de Aguinaldo também foi desnecessária.

Talvez porque esteja bem instalado em Portugal, Aguinaldo tenha esquecido de como algumas coisas funcionam abaixo do Equador. O público, como a Geni da canção, também tem seus caprichos. Nos últimos meses, a maioria dos telespectadores esteve envolvida com a fauna de Paraíso Tropical. Era Bebel pra cá, Olavo pra lá. E nós somos uma nação sentimental. Pegamos amor. Talvez por isso, o final de uma novela nunca agrade todo mundo. Não só pelo roteiro, mas também por dor-de-cotovelo: como aquela personagem ousa me abandonar, depois de tudo o que sacrifiquei por ela?

Há dificuldade em estabelecer uma nova relação, criar outros vínculos. A separação virá, isso é líquido e certo. Há mesmo uma resistência – mas, depois de um tempo, o coração amolece e todo mundo corre para diante da TV. Vai ser assim com Célia Mara, Juvenal Antena, Marconi Ferraço e até com a sonsa da Maria Paula. Mas é preciso dar tempo ao tempo, Aguinaldo.

Também é preciso reconhecer que o povo cansa das mesmas figurinhas. Antonio Fagundes e Stênio Garcia, de novo? Marília Pêra volta a fazer a trelelé de fala miada? O que dizer de Suzana Vieira – cabelos de Donatella Versace e peitos de Pamela Anderson – fazendo novamente o papel de, como é mesmo o nome? Ah, sim, Suzana Vieira. E por que Betty Faria está com máscara branca no lugar do rosto?

Por sorte, aparece uma delicada Renata Sorrah, fazendo a madame bovary suburbana, que despenca dos braços do amante gostosão para a barrigada do marido. Foi uma grande cena e, certamente, outras virão. Espanta o monstro de olhos verdes e relaxa, Aguinaldo. A gente acredita.’

 

CARNAVAL POLÍTICO
O Estado de S. Paulo

Marchinhas e políticos sempre combinam

‘Os bois do senador Renan Calheiros foram lembrados. O ´relaxa e goza` da ministra Marta Suplicy também. Até o mensalão voltou. A sátira política está sendo o forte do 3º Concurso Nacional de Marchinhas Carnavalescas da Fundição Progresso, na Lapa, no Rio.

Nas duas edições anteriores apareceram poucas músicas com sátiras políticas. Este ano, porém, elas representam 30% das quase 500 já registradas – as inscrições terminam na quinta-feira. Culpa do ano pródigo em escândalos. ´O momento político está carnavalesco, sem querer ofender o carnaval´, analisa Perfeito Fortuna, agitador famoso no Rio e criador do concurso da Fundição.

A tese de Fortuna é de que as sátiras políticas servem como uma catarse para o brasileiro enfrentar as notícias que chegam de Brasília. ´É uma chance de pelo menos rir do que nos acontece´, explica. Faz sentido. De todo o País, chegaram marchinhas com sátiras aos bois do senador Renan Calheiros (PMDB-AL), à máfia dos sanguessugas, ao presidente Lula e ao sistema de saúde.

A célebre frase ´relaxa e goza´, da ministra do Turismo, Marta Suplicy, no auge do caos aéreo, rendeu três marchinhas. O santista Pablo Ribeiro até gosta dela, mas não resistiu a escrever Relax da Marta – ´A ministra é quem mandou/relaxa e goza que a zorra se formou´. ´A marchinha é uma gozação em cima da declaração dela. Acompanho a Marta desde o tempo da TV Mulher, mas a política muda muito o perfil das pessoas´, lamenta o aposentado Pablo, fã de Zé Ketti e Lamartine Babo.

Até o baiano Moraes Moreira entrou na onda. A sátira do ex-Novos Baianos é ampla. O título da marchinha é Este País tá Dodói, uma queixa contra o sistema de saúde no Brasil, a começar pelos seguros.

Um mês depois de fazer 60 anos, em julho, Moreira recebeu a conta de seu plano. ´Estava 90% mais caro. Um absurdo. Parece que acham que eu estou morrendo. Só melhorei depois que fiz a música´, conta ele. A marchinha é assim: ´Eu já fiz tudo que pude/sem ter com quem reclamar/ apelo pro Bom Jesus/o meu destino é o SUS´.

A ira de Moraes Moreira não é só contra a empresa de seu seguro saúde, mas também contra o governo federal. ´A gente não tem para quem reclamar. O governo lava as mãos. Aí só apelando para o bom humor e fazendo música.´

É a mesma filosofia do pernambucano Fernando Azevedo, de 67 anos, pediatra de profissão e compositor por puro prazer. Autor de Frevo do Galo, sucesso na voz da cantora Amelinha, Azevedo se inspirou no escândalo que envolveu Renan Calheiros para escrever Pra Boi Acordar – ´Que coisa enrolada esse meu Brasil/uma novilha bem gostosa apareceu/ e vai comer bem direitinho/muita ração´. ´A gente já viu muito escândalo no Brasil. Mas esse do Renan Calheiros está se arrastando demais´, reclama Azevedo.

José Roberto Kelly, autor de marchinhas famosas, como Cabeleira do Zezé, elogia essa nova safra. ´Eu sempre fiz mais um retrato do cotidiano. Mas gosto destas músicas com sátira política. É um jeito de a gente extravasar nossa revolta com o que acontece.` Kelly é presidente do júri que escolherá as dez melhores marchinhas no dia 27. O vencedor será definido em janeiro, em votação popular durante o programa Fantástico, da Rede Globo.’

 

DEBATE
O Estado de S. Paulo

SIP debate impacto da web sobre o jornalismo

‘Em razão do impacto da internet e das novas tecnologias, a imprensa precisa redefinir o jornalismo que faz. O tema foi pauta na 63ª Assembléia-Geral da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP). O evento ocorre em Miami e vai até terça-feira. ´É possível aumentar a circulação e a renda publicitária com o aumento do tráfego nas páginas de internet´, disse Jennifer Carroll, vice-presidente de novas mídias da Gannett, que controla 85 jornais nos EUA e no Reino Unido.’

 

LITERATURA
Antonio Gonçalves Filho

O homem que releu a alma brasileira

‘Roberto Schwarz, responsável por uma revisão da obra machadiana, é celebrado em Um Crítico na Periferia do Capitalismo

Convidado a participar de um seminário sobre a obra do crítico literário, professor e tradutor Roberto Schwarz, realizado há três anos na Universidade de São Paulo, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, lembrando os tempos em que estudavam a obra de Marx, notou que houve uma transformação radical no amigo, ´uma espécie de reconstrução da personalidade` desse que é considerado, com justa razão, uma das vozes mais lúcidas do País. Schwarz, austríaco nascido há 69 anos em Viena e criado em São Paulo, não era mais o ´esquivo` colega ou o ´difícil` professor da juventude. Teria, ao contrário, se amalgamado no ´cidadão-escritor` que vive e critica a produção cultural com uma paixão ´tropicalista´, segundo FHC. O último adjetivo, reconheceu, era uma provocação ao amigo, que não chegou a ser vienense (veio ainda bebê para o Brasil) e fez-se brasileiro, seja escrevendo sobre Machado de Assis, traduzindo Brecht para o português, analisando Fellini ou o tropicalismo. É desse intelectual multidisciplinar que trata o livro Um Crítico na Periferia do Capitalismo (Companhia das Letras, 408 págs., R$ 59), organizado pelo historiador Milton Ohata e pela professora de literatura Maria Elisa Cevasco, ambos da USP.

Mais que uma homenagem ao autor de Ao Vencedor as Batatas, o livro reúne 30 textos entre análises, depoimentos e ensaios. Eles ajudam a entender por que um ensaísta com talento para poeta e cientista social preferiu dedicar-se sistematicamente à pesquisa e dar ao Brasil o ensaio que o crítico americano Perry Anderson (leia ao lado entrevista com o organizador Milton Ohata) considerou o melhor livro de crítica literária da segunda metade do século 20 centrado num só romance (Um Mestre na Periferia do Capitalismo, sobre a obra de Machado de Assis). Não é exagero. Outro americano, Neil Larsen, professor de literatura comparada na Universidade da Califórnia, diz que não escreve uma palavra de crítica nem dá uma aula sem consultar os escritos do professor, destacando que o conceito básico do pensamento dialético de Schwarz – ´o conceito do social como forma objetiva que habita na obra literária desde dentro` – ainda não foi pensado por nenhum crítico americano.

Crítico de formação marxista, Schwarz está, de fato, distante das abstrações de Jameson. Tem um olho na palavra e outro no mundo – sem cortar os vínculos entre os dois, como já observou seu mestre Antonio Candido. O psicanalista Tales A. M. Ab’Sáber acrescenta, no livro, outro mérito do crítico, o de ter formulado uma subjetividade própria ao país a partir da leitura de Machado de Assis, contribuindo para a discussão sobre o arsenal teórico freudiano. Machado, especialmente em Memórias Póstumas de Brás Cubas, já trataria de um tipo de sujeito psicanalítico, tipicamente brasileiro, avesso aos padrões do neurótico europeu analisado por Freud. Seria o perverso oscilante, aquele entre não-ser e ser o outro.

A singularidade do caso brasileiro é tal que o delírio brasiano é analisado com base numa frase-chave do livro: ´A obra é tudo.` O narrador, em seu ´radical narcisismo defunto´, assinala Ab´Saber, diz que ´a obra é tudo` porque totaliza a vida cultural em si mesmo, chamando a atenção sobre quanto o trabalho crítico de Schwarz foi importante para entender o ´espaço social arcaico-moderno` do Brasil. Ainda convivendo com a herança de uma ordem escravista e o lustro cultural da época de Machado, o País foi marcado pela importação das idéias do liberalismo europeu que ajudaram a elite brasileira a legitimar uma ordem perversa. Brás Cubas apenas mimetizaria, segundo essa interpretação, o comportamento da classe dominante sob a máscara de infrator de suas regras.

Há no livro Um Crítico na Periferia do Capitalismo outros exemplos da visão ´estereoscópica` de Schwarz. Um deles é lembrado pelo professor de História Francisco Alambert, ao citar a descoberta do escritor Paulo Lins e seu romance Cidade de Deus pelo crítico. Hoje consagrado, o livro, adaptado com sucesso para o cinema, poderia, segundo Alambert, convidar a uma abordagem tradicional, não fosse a percepção de Schwarz. Desde o início, antes mesmo que o livro chegasse à gráfica, diz o professor, o crítico ´notou que o romance de Paulo Lins era sintomático de uma reorganização da sensibilidade crítica na produção literária contemporânea´.

O professor e crítico de cinema Ismail Xavier reafirma esse talento visionário de Schwarz ao extrair propositalmente citações de um artigo escrito por ele em 1965 (sobre o hoje clássico Oito e Meio, de Fellini) e mostrar como esse texto poderia ter sido escrito ontem, antes mesmo que a noção de ‘sociedade de espetáculo` fosse usada pela primeira vez por Guy Debord em 1968. Schwarz viu Fellini com outros olhos, antecipando em muitos anos as discussões sobre o problema da imagem no mundo contemporâneo e o exibicionismo de uma sociedade que começava a descer a ladeira quando Fellini acompanhou seus primeiros passos antes da queda. Por tudo isso o seminário sobre Roberto Schwarz foi imperdível. O livro é uma segunda chance para quem não estava presente ao encontro.’

 

HUMANIDADES
Francisco Quinteiro Pires

Publicação esquadrinha o pensamento de Hannah Arendt

‘Depois de anos de padecimento e exílio, a pensadora Hannah Arendt (1906-1975) não vergou o espírito ao horror da realidade histórica do século 20: parodiando a máxima de Raskolnikov, em Crime e Castigo, a obra da filósofa alemã ensina à contemporaneidade: por amor ao mundo nem tudo é permitido.

O dossiê A Vida como Amor Mundi: Hannah Arendt entre a Filosofia e a Política da revista Humanidades (R$ 10, nº 53, 178 págs.), da Universidade de Brasília (UnB), reúne ensaios de seis especialistas sobre a filósofa que analisou uma humanidade submetida à brutalidade sistemática e inaudita, na qual se suprimiram os valores e regras que amparam o discernimento entre certo e errado.

Organizador do dossiê, o professor de filosofia da UnB Gerson Brea recorda que Hannah Arendt, em carta de 1955 a Karl Jaspers (1883-1969), diz ter cogitado nomear o livro A Condição Humana (1958) de Amor Mundi. ´Comecei tão tarde, na verdade somente nos últimos anos, a amar realmente o mundo (…) Por gratidão, quero intitular o meu livro sobre teorias políticas de Amor Mundi.´

Em A Condição Humana, no qual desenvolve as características fundamentais de seu pensamento, a filósofa alemã faz suas reflexões a partir das condições mais gerais da existência humana: efemeridade e finitude. Como viver diante de condições tão desfavoráveis? Para tratar da questão, ela se vale da política: não pensa o homem isoladamente, Arendt o concebe na pluralidade (nós), no lugar da singularidade (eu). ´O mundo não será tratado como algo em que me encontro totalmente sozinho, que me causa náusea e tédio e que, finalmente, me leva a experenciar a incondicional angústia, o inevitável absurdo, o completo fracasso´, escreve o professor Gerson Brea sobre o pensamento arendtiano.

O mundo será aquele que construímos – no plural -, um desafio humano constante e por vezes doloroso que fez Hannah Arendt questionar em seu diário: ´Por que é tão difícil amar o mundo?` Tal pergunta mostra a inquietude e atualidade da filósofa, que foi professora de Celso Lafer na Universidade de Cornell (EUA), autor de um ensaio sobre as afinidades e diferenças entre as obras de Arendt e do italiano Norberto Bobbio (1909-2004). Valendo-se de referências autobiográficas e biográficas, como a vivência de Arendt com o nazismo e a de Bobbio com o fascismo, Lafer indica as principais ´pontes` entre os dois pensadores, como as relações entre os conceitos de mal radical e banalidade do mal, mal ativo e mal passivo. O italiano e a alemã ganharam importância na intelligentsia brasileira por terem vivido na pele e meditado em suas obras os dilemas, desafios e catástrofes do século 20.

Ao refletir sobre o mal no século 20, no mundo pós-Holocausto, Bobbio distingue nele duas vertentes – a do mal ativo, aplicado pela prepotência sem limites do poder, e o mal passivo, sofrido por aqueles que padecem uma pena sem culpa. Em Origens do Totalitarismo (1951), inspirada por Kant, Hannah Arendt tratou do mal radical, suscitado pelo ineditismo da meta de erradicação da ação humana implementada pelo totalitarismo, para o qual os seres humanos são supérfluos e descartáveis. Em seqüência, ela elabora em Eichmann em Jerusalém (1963) a expressão banalidade do mal, que é a incapacidade de as pessoas pensarem o significado do bem e do mal. Apesar dos horrores produzidos por regimes totalitários, Lafer alerta que a realização do mal ainda é possível – não se aprendeu a lição -, toda vez que se contempla sem reflexão a hipótese de um extermínio nuclear.’

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Folha de S. Paulo – 1

Folha de S. Paulo – 2

O Estado de S. Paulo – 1

O Estado de S. Paulo – 2

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