“Traz na alma uma pérola, a pureza, e as pérolas não se desfazem na lama” (Victor Hugo)
Nesta resenha crítica vamos avaliar como a designação “alma sebosa” tem causado distorções jurídicas e reações estigmatizantes junto às famílias daqueles envolvidos em alguma ocorrência policial através de programas de TVs e jornais sensacionalistas e como a falta de uma regulamentação para os meios de comunicação tem permitido todo tipo de transgressão por parte da mídia.
A expressão “alma sebosa”, amplamente utilizada pela imprensa sensacionalista pernambucana, constitui-se, em si mesma, um caso de polícia, ou, mais exatamente, uma questão jurídica, pois ao usá-la a imprensa já está invariavelmente condenando aquele que a recebeu. Pelo poder que a mídia tem para criar nas pessoas comportamentos, expressões linguísticas etc., faz-se necessário o estabelecimento de normas que coíbam práticas dos meios de comunicação que firam a dignidade humana e estimulem à população a assumir uma posição num fato noticiado ainda incompleto.
Assim, quando alguém recebe o rótulo de “alma sebosa”, seja ele impingido pela imprensa ou pela população, esse “alguém” já tem uma condenação definida e, mesmo que posteriormente se prove o contrário, ou seja, a sua inocência, vai carregar, no entanto, esse estigma para o resto da vida. Isso indica a irresponsabilidade civil da imprensa pernambucana e, diremos também, brasileira, pois, assistimos à mesma conduta na imprensa nacional.
Não foi à toa que o documentário TV Alma Sebosa utilizou em seu título esta expressão para chamar a atenção e questionar a falta de ética jornalística, quando esta, preocupada apenas em obter audiência para conquistar os seus patrocinadores ao transformar a desgraça em espetáculo, apela para designações que já impõem um julgamento e condenação naqueles envolvidos em algum fato policial.
É uma perversidade social quando alguém recebe o rótulo de “alma sebosa” sem sequer se levar em conta questões psicológicas, sociais e até mesmo circunstanciais do caso em que uma pessoa foi e está envolvida num crime ou delito. Assim, cabe apenas à justiça decidir o caráter jurídico do caso em que ela se envolveu. O que constatamos aqui é o grau de manipulação que a mídia tem sobre o telespectador mais desavisado.
Desta forma, a repercussão de expressões como essas pode destruir a vida daqueles que são os seus alvos. Normalmente, ou quase sempre, as vítimas dessas expressões são pessoas de classes sociais menos favorecidas. Nunca assistimos a esse tipo de rótulo ser usado, por exemplo, quando um político está sendo acusado de algum crime ou, pelas mesmas razões, com pessoas de classe média. Então, trata-se, de forma implícita, de um alargamento do preconceito social que contamina nossos meios de comunicação de uma forma geral.
A pseudoneutralidade dos fatos noticiados
Tiramos do site do wikicionário a seguinte definição para alma sebosa: “Locução Substantiva – alma sebosa, feminino – (Regionalismo, Brasil, Pernambuco, Recife): mau elemento, pessoa nociva à sociedade, por exemplo, um ladrão, um estelionatário.”
Ou seja, constatamos vergonhosa e tristemente que a origem dessa expressão nasceu aqui em nosso estado. E, não podemos deixar de ficar indignados com a insistência da imprensa (com a conivência da polícia) em continuar a violar, por exemplo, o direito de um acusado de “permanecer calado e não produzir provas contra si mesmo”.
Por que os direitos constitucionais estão sendo transgredidos pela imprensa e ainda não há nenhuma regulamentação para os meios de comunicação no Brasil? Afinal, o uso equivocado da suposta “liberdade de imprensa” tem provado apenas a sua irresponsabilidade civil. O que lemos no disposto no inciso LXIII, do artigo 5º: “O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.” Por que ainda assistimos, estarrecidos, à imprensa brasileira violar esses direitos?
No caso da imprensa sensacionalista, que tem como público-alvo pessoas desprovidas de informações de seus direitos, o abuso e a transgressão parecem situar-se no campo legal e, assim, continua irresponsavelmente a colocar a audiência acima dos direitos constitucionais de todo cidadão brasileiro – e isso, de forma impune. Por que, então, apesar da inconstitucionalidade do fato, a imprensa continua a invadir os direitos dos cidadãos? Sabemos do poder que ela (a mídia) tem e, assim, apesar de sua postura antiética, consegue impedir a aprovação da regulamentação de sua atividade no Congresso Nacional através de lobistas dependentes e comprometidos com ela.
Recentemente, quando uma proposta de Lei foi sugerida, o argumento contrário era de que ela feria a “liberdade de imprensa”, mas não se levou em conta a “responsabilidade social da imprensa”, que teima em transgredir, inclusive, direitos constitucionais. O poder econômico que os grandes conglomerados da mídia mantêm no Brasil nos faz reféns do abuso indiscriminado que eles nos impõem acima, inclusive, dos direitos civis. O absurdo continua, pela força que os patrocinadores esperam da audiência, a manipular a opinião pública e tentam mascarar-se com toda competência que lhes é própria, uma pseudoneutralidade dos fatos noticiados.
Rótulos para situar elementos num tecido social
Desinformados, acreditamos verdadeiramente naquilo que lemos, ouvimos e assistimos. Somos usados e nos tornamos vítimas de nossa própria ignorância. E, é justamente essa ignorância que a mídia deseja que seja mantida para que a dissimulação continue a mascarar a verdade. Assim, nomes, expressões, jargões, rótulos estão sendo bombardeados todo instante por ela para induzir-nos ao que pretende incutir-nos. Condenamos pessoas, julgamos atos, decidimos crimes sem sequer termos todas as vertentes do caso, porque somos simplesmente massa de manobra para a mídia.
“O poder da designação, a arma secreta da mídia”, como é dito por Rajagopalan, encontra na expressão “alma sebosa”, entre tantas outras, uma força de penetração popular preocupante. Essa expressão já contém uma histórica carga de preconceito social que se vem arrastando há séculos no Brasil e que serve para situar um indivíduo em determinada camada social (a imprensa não a usaria com pessoas de outra classe social, mesmo que tivessem cometido, por exemplo, um crime semelhante).
Também essa designação tem uma carga maniqueísta, situando aqueles que a recebem numa divisão definida entre o bem e o mal. O uso dessa designação também coloca aquele que a emprega (o apresentador de um programa policial, por exemplo) como julgador qualificado e definitivo da situação, como ele fosse a própria lei (com todo o conteúdo legal a ela inerente) e estivesse acima de interesses meramente pessoais (no caso, a audiência).
A junção das duas palavras – “alma” e “sebosa” – já é uma agressão cultural, pois alma, para a maioria das religiões, ou seja, no seu sentido teológico e mesmo filosófico, é algo que representa a pureza. Alma é a essência do ser, aquilo que o anima, que o faz ser. Quando é acrescentado o adjetivo “sebosa”, a alma é contaminada em sua própria existência, em sua própria essência. Mas uma essência não pode ser alterada, ou deixará de ser essência.
Vivemos numa sociedade que tenta impor limites às pessoas. Assim, de forma deturpada, tentam-se criar rótulos para situar os elementos dentro de um tecido social numa dada esfera. Através desse raciocínio simplista, é necessário recolher o indivíduo a um papel visível, onde se possa recortá-lo para poder enquadrá-lo. O indivíduo é visto como um produto também e, como tal, vale pelo lucro que dele se pode obter.
As aberrações que a mídia perpetra
“Alma sebosa” é uma designação usada para condenar antecipadamente e situar um suspeito numa categoria para sua exclusão imediata do convívio social. O acusado já será colocado no banco de réu social e não tem e não terá mais nenhum direito a ser respeitado; o julgamento e veredito já foi definido pela mídia. No site Aracati em Notícias, o autor do artigo escreve: “Agora ofender e levar as pessoas ao ridículo com apelidos como chuchu, cabeça grande, alma sebosa, sapatona, alça de caixão, corno e outros adjetivos nada elegantes, ultrapassa esse direito que nos foi concedido a preços muito altos” (Aracati Notícias).
Enfim, o poder que a imprensa tem para designar e a capacidade de manipular requerem uma revisão urgente para regulamentar os seus limites éticos e legais, já que ela atinge diretamente a formação de ideias, pois, sua ação precisa ser encarada como uma questão social com todas as suas implicações. E, não há inocência por parte daqueles que manipulam as notícias. O efeito que uma designação cria nas pessoas é rápido e profundo, chegando mesmo a provocar reações populares imediatas. A designação “Alma Sebosa” repercute até mesmo em letras cheias de revanchismos dos rappers paulistas, onde a estimulação ao ódio é explícita: “…somos guerreiros, favelas, combatentes de guerras, alma sebosa seu destino é a sete palmos da terra…” (Subconsciente Rappers).
Concluímos que não faz sentido não existir ainda uma lei que regulamente o exercício da mídia. Na CartaCapital publicada no dia 04/06/2014, o artigo: “Regulação da mídia não é censura”, os autores, Pedro Ekman e Bia Barbosa, escreveram: “Desinformar é a estratégia de boa parte da mídia quando se trata de discutir seu próprio funcionamento. Ao falar de regulação, vigora discurso propositadamente parcial e distorcido.”
E, para entendermos como essa questão envolve diversos interesses, a distorção a respeito do assunto continua sendo alimentada e manipulada politicamente:
“Recentemente, a presidenta Dilma Rousseff, pré-candidata à reeleição pelo PT, declarou que, se eleita, enfrentará o debate acerca da regulação dos meios de comunicação. A afirmação causou furor na mídia comercial, que não perde oportunidades para alimentar a versão de que há um plano da esquerda para controlar a mídia e impedir críticas ao governo. O candidato da oposição, Aécio Neves (PSDB), também se apressou a reafirmar ‘o PT quer censurar a imprensa’” (CartaCapital).
A situação persiste e, infelizmente, temos que ler, ouvir e assistir ainda as aberrações que a mídia continua perpetrando com designações, por exemplo, como expressões “alma sebosa”.
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Hideraldo Montenegro é estudante de Ciências Sociais