Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O fermento da narrativa

Título de uma coletânea organizada em 1973 por Tom Wolfe, o termo ‘New Journalism’ ficou para sempre associado à geração de escritores norte-americanos representada no livro: Truman Capote, Gay Talese, Norman Mailer, Hunter Thompson, Joan Didion, o próprio Wolfe e outros que, como pregava o manifesto publicado à guisa de introdução, fundiam técnicas jornalísticas e literárias para documentar a realidade. Por isso, foi em parte como provocação que Gabriel García Márquez e o jornalista Jaime Abello se apropriaram da expressão ao batizarem a Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano (FNPI), fundada em 1995 na cidade colombiana de Cartagena de Índias para ser um de excelência em jornalismo narrativo na América Latina.


– Digamos que foi uma brincadeira. A fundação bebe na fonte do ‘New Journalism’, mas seu nome tem a ver sobretudo com a ideia de renovação do jornalismo na América Latina. E essa renovação começa por lembrar que nós temos tradição própria nisso, anterior à norte-americana. Grandes cronistas latino-americanos do século XIX, como José e Rubén Darío, faziam jornalismo narrativo – diz Abello, um ex-diretor da emissora pública colombiana Telecaribe, dirige a FNPI desde o início.


Nos anos seguintes à criação da FNPI, a América Latina viu surgirem diversas revistas que abrigam variações gênero: a mexicano-colombiana Gatopardo (2000), a peruana Etiqueta Negra (2001), a colombiana Malpensante (1996), as salvadorenhas El Faro (1998) e Septimo Sentido(2008), a chilena The Clinic (2001), argentinas La Mujer de mi Vida (2003) e El Puercoespín (2010), a venezuelana Marcapasos (2007), entre outras.


Muitos jornalistas envolvidos nestas publicações passaram pelos bancos da fundação, que se tornou o centro de rede de contatos que se estende pelo continente.


– Ela nos faz sentir parte de uma pátria comum – diz Guillermo Osorno, editor da Gatopardo, numa opinião encontra eco na de colegas como o diretor de El Faro, Carlos Dada (‘A FNPI é o espaço de encontro para um diálogo extraordinário’), e o fundador da El Malpensante, Andrés Hoyos (Ela é crucial para o jornalismo latino-americano).


Em 16 anos, a FNPI promoveu mais de 300 oficinas e seminários, reunindo cerca de 8 mil jornalistas de toda a América Latina. A grade curricular reflete as preocupações de García Márquez, um repórter por formação e autor de clássicos também da não ficção, como Notícias de um sequestro (1996). Abello lembra que o escritor, ao convidá-lo para elaborar o projeto da fundação, reclamou das teorias que engessavam o texto jornalístico em universidades e redações. As da FNPI incentivam a experimentação formal, mas sublinham a importância da apuração, razão pela qual Abello prefere o termo ‘jornalismo narrativo’ a ‘jornalismo literário’.


– Para além do valor literário, o jornalismo narrativo é um trabalho de apuração e pesquisa – explica Abello.


Financiamento ainda é a maior dificuldade


Influenciadas pelas publicações emblemáticas do gênero (New Yorker, Esquire, Rolling Stone), e pelo cânone inclui, além da geração do ‘New Journalism’, mestres da não ficção como Joseph Mitchell, Joseph Roth, Ryszard Kapuscinski, essas revistas constituem ‘um fenômeno emergente’ em busca de voz própria, avalia o jornalista americano Jon Lee Anderson, repórter da New Yorker e professor da FNPI. Fluente espanhol, Anderson colabora regularmente com revistas da região, sobretudo a Etiqueta Negra, e diz que escrever em outra língua pode ser libertador.


– Acho que sou mais livre com minhas opiniões em espanhol. Minha voz pode ser mais rude e meu olhar, mais impiedoso ou humorístico. Se isso é uma patologia pessoal (como ter um alter-ego disponível apenas em outro idioma) ou mero sintoma de comunicação em língua estrangeira, eu não sei. Mas me divirto muito – conta Anderson.


O principal entrave ao ‘fenômeno emergente’ identificado por Anderson é a dificuldade de financiamento para publicações desse estilo, que tendem a consumir muitos recursos em apurações longas e atrair poucos patrocinadores. Jaime identifica três ‘estratégias de sobrevivência’ encontradas pelas revistas latino-americanas: um modelo experimental que colaboradores trabalham quase de graça (‘pela causa’, brinca) e vivem de outras atividades; uma organização mista em que conteúdo comercialmente viável sustenta o jornalismo narrativo (a chilena Soho, por exemplo, esconde suas reportagens entre ensaios sensuais); e, não raro, o mecenato.


A seguir, as histórias de cinco revistas de língua espanhola e da piauí, maior título brasileiro do gênero.


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O novo jornalismo latino-americano


** Etiqueta Negra (Peru) – A revista que em 2011 completa dez anos como um dos mais bem-sucedidos experimentos em jornalismo narrativo na América Latina surgiu por um mal-entendido. Recém-saído do diário El Comercio, Julio Villanueva Chang foi procurado por dois irmãos donos de gráfica, de um bairro popular de Lima, interessados em abrir uma revista gratuita de estilo de vida para diplomatas e empresários. Em quase 100 edições, a Etiqueta Negra nunca foi isso, mas os patrocinadores continuam a apoiar um projeto que, apesar do sucesso, está sob ameaça permanente.


– Todas as revistas culturais, não só a nossa, podem fechar a qualquer momento: nunca foram um negócio – diz Chang.


A Etiqueta Negra se financia com suplementos encartados, como guias de gastronomia e moda. Chang vive de palestras e oficinas pelo mundo (comandou uma na última Flip, por exemplo). E os colaboradores, apelidados carinhosamente de ‘cúmplices’, aceitam somas simbólicas para participar do que Chang chama de ‘história íntima’ da revista: ‘a experiência de criar juntos’.


Em Lima, três editores e um assistente dividem um escritório com a equipe que faz os encartes comerciais. Mas a redação da Etiqueta Negra está espalhada pelo mundo: há dois editores associados nos Estados Unidos e dois na Espanha e uma comunidade global de ‘cúmplices’, como os americanos Jon Lee Anderson e Susan Orlean, o argentino Alan Pauls, o mexicano Juan Villoro e o polonês Artur Domoslawski, entre outros. Essa equipe heterogênea faz uma mensal que transita entre o perfil de celebridades (o goleador Messi, o chef Ferran Adrià) e anônimos (o elegante guarda de trânsito da mais caótica esquina de Lima), o panorama cultural bem-humorado (uma crônica da batalha entre Coca Cola e Inca Kola, o Guaraná Jesus peruano) e a crítica social (as denúncias, apuradas por um ano, que desmascararam um oficial condecorado por bravura).


** El Malpensante (Colômbia) – Um número típico da revista tem mais literatura que jornalismo: o mais recente traz um artigo da americana Joyce Carol Oates sobre a escrita e a corrida, uma reflexão sobre a musicalidade de James Joyce, um ciclo de 25 microcontos de 100 palavras… Mas quando abre espaço para a não ficção, a El Malpensante, que sai a cada 45 dias desde 1996, não economiza. A edição de março-abril de 2004, por exemplo, era quase totalmente ocupada por um relato de 70 páginas da jovem médica colombiana Natalia Aguirre Zimerman, que testemunhou o início da ocupação americana no Afeganistão enquanto trabalhava com os Médicos Sem Fronteiras, de 2002 a 2003. O texto (‘excepcionalmente grande até para as dilatadas tradições desta revista’, brinca a introdução) foi publicado em livro pela espanhola Anagrama, com o título 300 dias no Afeganistão.


Essa e outras edições (como os especiais sobre a legalização das drogas e a eutanásia), fizeram da revista literária de Bogotá uma referência também no jornalismo narrativo.


– O que valoriza uma história para nós é a força de seus personagens, o interesse despertado por seus fatos, não o significado sociopolítico que se possa atribuir a ela – diz o fundador da El Malpensante, Andrés Hoyos, que foi seu diretor até 2009, quando deu lugar ao escritor e co-fundador Mario Jursich.


Financiada durante os primeiros três anos por Hoyos (já saudado na imprensa local como ‘um dos poucos colombianos ricos dispostos ao mecenato’), El Malpensante completa 15 anos de circulação ininterrupta, sustentada por ‘uma renda publicitária insuficiente’, conta. Nesse período, a revista criou uma identidade visual própria, marcada pelas lindas ilustrações de capa, e passou a promover um evento literário, o Festival Malpensante, que reuniu 16 mil pessoas ao longo de três dias na edição de junho de 2010, em Bogotá.


** piauí (Brasil) – Frequentemente comparada à New Yorker, a revista brasileira tem muito em comum com outras publicações latino-americanas do gênero e é uma referência importante para jornalistas da região, apesar da barreira do idioma e da pouca interlocução com a Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano (FNPI). Circulando mensalmente desde 2006, a piauí foi pensada como um contraponto à linguagem que dominava, e ainda domina, a imprensa brasileira, diz o diretor de redação Mario Sergio Conti.


– Queríamos fazer uma revista com um olhar curioso num momento em que a imprensa estava muito centrada na opinião. E queríamos humor. Eu sempre me perguntava por que no Brasil não tínhamos cartum de náufrago em ilha deserta – lembra Conti, que foi diretor de redação da Veja de 1991 a 1997, e desenvolveu o projeto da piauí com João Moreira Salles, publisher da revista, Dorrit Harazim e Marcos Sá Correa.


Hoje o principal veículo de jornalismo narrativo num país onde o gênero tem pouca tradição, a piauí remete a experiências isoladas de sucesso, como as revistas Realidade (1966-1976) e Senhor(1959-1964). Esta última, que trazia desde Ivan Lessa discutindo a revolução sexual com um rabino e um ginecologista a Carlos Lacerda escrevendo sobre o cultivo de rosas, ‘tinha um humor que continua atual e envelheceu melhor’ que a primeira, avalia Conti.


Bancada nos primeiros dois anos por João Moreira Salles, a piauí vende hoje cerca de 52 mil exemplares por mês, mas ainda tem dificuldades para atrair anunciantes. A desconfiança inicial de que a revista poderia ter um público excessivamente elitizado, diz Conti, foi desfeita por uma pesquisa recente que mostrava os três pontos do Rio (sede da revista) em que era mais comprada: uma livraria no Leblon, outra em Ipanema e a banca de jornais da rodoviária Novo Rio.


** Gatopardo (México) – Desde o início, a revista mensal fundada na Colômbia em 2000 aspirou a ser, de fato, latino-americana. Circulava em dez países, da Argentina ao México (onde tinha edição própria), e chegava a Miami e Nova York. Logo o modelo se provou ambicioso demais: a distribuição era complexa, colaboradores passavam meses sem receber. Depois de quase quebrar na crise global de 2008, fechou o escritório colombiano e passou a ser editada no México, circulando só nesses dois países.


Hoje, com as finanças e a economia regional mais estáveis, a Gatopardo estuda começar pelo Equador o seu ‘regresso latino-americano’, conta o editor Guillermo Osorno. Essa ambição continental se reflete nas páginas da mensal, que une temas candentes como crime e política à cobertura cultural. Osorno destaca dois textos representativos do espírito da Gatopardo: uma investigação de um ano sobre cartéis de drogas de Ciudad Mier, na fronteira mexicano-americana, publicada em abril, e uma crônica, premiada pela FNPI em 2010, sobre a Equipe Argentina de Antropologia Forense, que identifica vítimas da ditadura.


– Buscamos textos que tenham forma de parábola, com algo a dizer sobre a natureza humana; que sejam um rascunho da História, com reverência à precisão, ao contexto e à verdade; que sejam concebidos com amor à linguagem, e possam por isso ser considerados literatura – diz Osorno.


Mais de uma vez, a revista virou livro. A primeira coletânea de artigos, publicada em 2001, foi definida pelo escritor mexicano Carlos Monsiváis como uma síntese ‘da América Latina do fim do século XX e princípio do XXI’, com ‘o óbvio e o insólito, o apaixonante e o que nunca pensaríamos que pudesse interessar tanto’.


** El Faro (El Salvador) – A repercussão quase nula do lançamento do site , em 1998, não foi surpresa: num país recém-saído de uma guerra civil, onde pouca gente tinha conexão à internet, quem prestaria atenção a um veículo online? Nos anos seguintes seus criadores tentaram transformá-lo num impresso, mas concluíram ‘que não havia espaço para que um meio de nossa natureza fosse rentável em El Salvador’, conta o diretor da publicação, Carlos Dada.


Essa ‘natureza’ é difícil de resumir: ‘Não somos uma revista’, esclarece Dada. El Faro é um site que publica reportagens longas e elaboradas, mas também notícias diárias. É ainda uma produtora de programas de rádio, documentários, livros e, mais recentemente, curtas-metragens animados de não ficção.


– Gostamos muito de experimentar narrativamente e as novas tecnologias oferecem ferramentas para isso – diz Dada.


Hoje com uma média de 300 mil leitores por mês no site, El Faro sobrevive graças a fundos de cooperação internacional e patrocinadores ocasionais. Os 13 anos de persistência foram recompensados no mês passado com o prêmio Ortega y Gasset. Foi a primeira vez em que o Pulitzer do jornalismo em língua espanhola, concedido desde 1984 em quatro categorias pelo diário El País, chegou a El Salvador. A reportagem vencedora da categoria jornalismo digital, ‘O criminalista do país das últimas coisas’, de Carlos Martínez e Bernat Camps, explora as possibilidades dos formatos usados por El Faro. Um site especial reúne uma revista digital de 54 páginas e um documentário de cerca de dez minutos sobre o único criminalista que trabalha na investigação de assassinatos em El Salvador, país com a maior taxa de homicídios do continente.


** Pie Izquierdo (Bolívia) – Oito meses se passaram entre a mensagem efusiva em que Álex Ayala Ugarte anunciava o surgimento da ‘primeira revista boliviana de jornalismo narrativo’, em abril de 2010, e o e-mail melancólico que admitia aos amigos e colaboradores: ‘Fracassamos’. O último editorial, publicado em dezembro, revelou o motivo do fim prematuro com a irreverência que marcou a vida breve da Pie Izquierdo: ‘Devido à escassez de anúncios publicitários, nós nos fodemos’.


Um repórter espanhol que desembarcou em La Paz em 2001, com 22 anos, para um estágio no jornal La Razón, Ugarte trabalhou como redator e editor em veículos locais até fundar a Pie Izquierdo. Os primeiros números foram bancados por ‘dois generosos acionistas que decidiram se arriscar’, conta. Com uma equipe formada por ele mesmo e um colega, a revista se apoiava numa extensa rede de colaboradores na Bolívia e no exterior (‘Todos pagos’, orgulha- se). Aluno de três oficinas da FNPI, ele encontrou na fundação uma forma de ampliar o expediente da Pie Izquierdo, que publicou textos de Jon Lee Anderson, Juan Villoro, Alma Guillermoprieto e outros jornalistas de renome ligados à instituição.


Em oito edições, a Pie Izquierdo abordou desde a rotina de uma camareira de motel boliviana aos dramas de consciência de um bandido guatemalteco que, na prisão, descobre que o filho de 13 anos quer seguir seus passos. O fracasso honroso da revista mostra como ainda pode ser difícil financiar o gênero na América Latina, mesmo com os avanços recentes.


– O jornalismo narrativo tem pouquíssima presença nos meios bolivianos, e as empresas, ainda mais em tempo de crise, preferem apostar no que é seguro: jornais e revistas que se dedicam quase exclusivamente à conjuntura política e econômica, à moda, ao sexo ou à fofoca das celebridades – lamenta Ugarte.