Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O fim de um gênio (do mal?)

Evandro de Oliveira Bastos morreu em Brasília, no dia 7 de novembro, aos 73 anos, de falência múltipla dos órgãos, em conseqüência de um câncer de próstata. Seu corpo foi enterrado no dia seguinte, no cemitério Campo da Esperança. Passado mais de um mês da sua morte, a imprensa paraense não fez qualquer registro digno do fato: nascido em Peixe-Boi, Oliveira Bastos foi um dos mais brilhantes e mais bem sucedidos jornalistas da terra. Conseguiu raro reconhecimento nacional ao seu talento, que não era pouco e era múltiplo.

Chegou desconhecido ao Rio de Janeiro, ainda a capital do país, na década de 1950. Por sua inteligência privilegiada, tornou-se secretário particular do poeta Oswald de Andrade, um dos fundadores do antropofagismo da revolução modernista dos anos 1920. Passou-se ao Jornal do Brasil no momento em que um grupo de profissionais, entre jornalistas e escritores, transformou-o, revolucionando a imprensa brasileira. Foi quando Oliveira Bastos atravessou a linha divisória entre a literatura, onde até então pontificara como crítico arguto, e o jornalismo, que o projetou para as cercanias do poder.

Chegou ao máximo a partir de 1973, quando se mudou para Brasília. De 1976 a 1982 dirigiu a redação do Correio Braziliense. A capacidade melíflua de Oliveira se manifestou em plenitude nesse período: nunca deixou de agradar o governo, principal fonte de faturamento da empresa, mas de vez em quando lhe dava mordidas para exercitar seus dentes afiados (pela ironia, o sarcasmo e do estilo requintado). E mostrar ao patrão que tinha dentes próprios, credenciando-se a ser temido.

Vias transversas

A ambigüidade é um dos dons dos grandes criadores. Sem empecilhos de natureza moral ou ética, Oliveira usava e abusava dessa – digamos assim – qualidade. Combinando-a com uma inteligência realmente privilegiada, ele podia ser tanto um interlocutor fascinante quanto um adversário temível. Testei as duas faces dessa lâmina. Em 1975 ele me surpreendeu agradavelmente mandando de Brasília – por generosa geração espontânea – um texto para o Bandeira 3, semanário que então editei, saudando-o como uma grande promessa no jornalismo paraense e fazendo devastadoras observações, como bem cabia num crítico, num oposicionista. Prometeu mandar mais e não mandou, como seria de esperar. Nada cobrou. Nada dele podia ser cobrado.

O artigo no B3 de certa forma o distanciava da terrível polêmica que anonimamente provocara no ano anterior. Convencera o senador Milton Trindade de que era preciso dar um basta em Romulo Maiorana, que começava a galgar o topo da imprensa paraense, a partir da compra de O Liberal, oito anos antes. Oliveira redigiu artigos terríveis contra Romulo, que A Província do Pará publicou com destaque, além de notas na coluna política do jornal. Foi a mais violenta medição de forças na imprensa local desde o fim de Paulo Maranhão, também em 1966.

O armistício acabou vindo, em parte graças ao próprio Oliveira, atuando, conforme seu estilo, nos bastidores. Só que o promotor da briga mudara de lugar, passando a assinar artigos e coluna em O Liberal, que até a véspera vergastara. Foi nessa nova e surpreendente condição que reapareceu em A Província. Abriu a porta do gabinete do senador-diretor, meteu a cara e anunciou: ‘Chegou o trânsfuga’. Até Roberto Jares, que tentara evitar o duelo, riu da molecagem bem-feita. Embora amarelo fosse o riso.

Bati de frente com ele no episódio do confronto entre a Igreja e o regime militar, no Araguaia, do qual resultaria a prisão dos padres franceses Aristides Camio e François Gouriou, processados por crime contra a segurança nacional, no início da década de 1980. Por vias transversais, Oliveira teve acesso a uma entrevista exclusiva com o padre Florentino Maboni, feita pro forma por um repórter policial de A Província do Pará, também dos Diários e Emissoras Associados, mas montada pelo SNI (Serviço Nacional de Informações em Brasília, do general Newton Cruz). Maboni, capelão militar em Santo Ângelo, no Rio Grande do Sul, acusaria seus colegas e superiores no Araguaia, para onde acabara de ser transferido. Só ao prendê-lo, como subversivo, seus algozes se deram conta de que ele era do ‘outro lado’.

Predador brilhante

Graças a uma série de coincidências e iniciativas, reconstituí toda a farsa engendrada pelo SNI, com a participação de Oliveira, que usara o repórter de A Província como inocente útil para uma fachada de respeitabilidade, de material realmente jornalístico. No dia em que o Correio Braziliense trombeteava na primeira página a acusação do padre aos seus superiores, atingindo os bispos de Conceição do Araguaia e Marabá, dom Estevão Avelar e dom Alano Pena, eu publicava matéria de página inteira em O Estado de S.Paulo com os bastidores da montagem. O golpe fracassou. Oliveira se vingou com um editorial na primeira página do Correio, me ‘entregando’ ao ‘sistema de segurança’ como mais um subversivo.

Esse foi o choque direto e aberto. Mas eu o atingiria indiretamente quando mostrei que a denúncia feita contra os bispos, religiosos e agentes de pastoral da Igreja no Araguaia, embora assinada pelo promotor estadual Carlos Aílson Peixoto, era cópia integral de um libelo contra os missionários publicado no Correio Braziliense, escrito por Oliveira. O promotor não colocara aspas nem fizera referência ao texto original. Sua peça perdeu valor jurídico, se desmoralizando.

Quando recebi a cópia do documento, no mesmo dia em que ele foi juntado aos autos do processo, tive um estalo imediato: eu já lera aquele texto. Mas como, se a denúncia acabara de ser produzida? Matutei, revirei a memória e fui cavoucar nos papéis acumulados. Assim cheguei ao texto de Bastos. Mesmo entregando a alma ou defendendo uma causa injusta, ele era inesquecível quando escrevia. Para o bem e para o mal.

Nossa última polêmica foi em 1996 e está documentada no meu último livro, O jornalismo na linha de tiro [ver aqui o texto de introdução do livro]. Ele realmente veio atirando a esmo contra mim, como porta-voz da C.R. Almeida, no caso de grilagem no Xingu. Era para me massacrar. Mas acho que saiu bem chamuscado. Quem quiser tirar a dúvida, recomendo a leitura da troca de cartas entre nós, que está no livro. Enfrentá-lo, além de prova de fogo, era um teste de maturidade. É muito difícil vencer o predador em seu terreno. O problema do predador é que o poder da iniciativa já não é mais dele quando toma a iniciativa do ataque.

Evandro Oliveira Bastos merecia obituário à altura do que foi. E capaz de reconstituir o que podia ter sido se não se tivesse tornado um brilhante e perigoso predador. O silêncio não lhe fez justiça. Espero que suas duas filhas dêem um jeito competente de concluir as anotações autobiográficas que ele estava fazendo e publicá-las. Aí se poderá ver que, apesar de tudo, o saldo da passagem de Bastos por esta terra foi positivo.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)