Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O fim de uma época

Foto: Pressphoto/Freepik

Um dos prazeres da minha geração é tomar um café abrindo um jornal ou revista para o dia começar bem. Na Europa, nos Estados Unidos, esse prazer permanece somado a um item quase esquecido por aqui, levar para um café um exemplar escolhido à dedo na livraria do caminho. Este fim de semana surrupiou um desses prazeres com o fim anunciado cheio de eufemismos da revista Época. Tive o mesmo sentimento de adeus que me deixaram a revista Bravo ou o Jornal do Brasil. A mesma certeza de que esta geração está se despedindo dos velhos bares, das livrarias, dos jornaleiros, da ideia de tempo e reflexão.

Foi um prazer de saudade antecipada ler a página de Monica de Bolle, “Ruptura”, despedindo-se da análise da economia.

“Deixo com vocês uma reflexão final sobre o tempo. Há tanta coisa para pensar, tantas adequações a serem feitas, tanta dor e tragédia para absorver, tantos ciclos a encerrar. É importante não se deixar perder na turbulência das redes sociais, no amontoado de vozes, na indignação e na frustração alheias. A ruptura que lhes proponho após o término desta coluna é o distanciamento das redes”.

Outro adeus que doeu foi a coluna de Hélio Gurovitz que se dissolveu no espaço. Ao longo de seis anos e quase quatro meses ele escreveu sobre livros. De literatura, política, economia, negócios, tecnologia, comportamento, educação, matemática, ciência, pandemia, humor, filosofia, história e religião. Foram 324 textos sobre 328 títulos de 323 autores. Só com Shakespeare foram cinco colunas e é com o bardo que ele escolheu se despedir: com as palavras do personagem principal de “A Tempestade”, Próspero, duque de Milão, exilado numa ilha mediterrânea apenas com a filha Miranda e os livros que ele conseguiu salvar de sua biblioteca. Próspero estudou saberes herméticos até tornar-se um mago capaz de invocar os espíritos e se vingar com a tempestade que atrairia à ilha o usurpador de tudo o que ele tinha. E o que acontece no final? Próspero recua, renuncia, perdoa. E é com as palavras de Próspero que Hélio se despede na coluna “Que Sua Indulgência me Liberte”:

“Os meus encantos se acabaram
E minhas forças, que restaram,
São fracas, e eu sei verdadeiro
Que ou cá me fazem prisioneiro
Ou podem me mandar pro lar.
Não me obriguem a ficar (…)
Nesta ilha que é só deserto.”

“Um Mestre das Palavras” foi a reportagem de Ruan de Souza Gabriel sobre a longa lista de autores traduzidos pelo diplomata Jorio Dauster, a começar com J.D. Salinger, que ele primeiro introduziu no Brasil ao apresentar “O Apanhador no Campo de Centeio” a Rubem Braga, sócio de Fernando Sabino na Editora do Autor. Graças a ele lemos uma tradução corrida sem aqueles engasgos que nos fazem supor, no meio do livro, que o idioma deve ser javanês, embora em português. Para o personagem Holden Vaulfield, Dauster, junto com dois colegas diplomatas, introduziu gírias cariocas dos anos 60, “no duro”, “um bocado”, “coisa que o valha”. A editora Todavia lançou nova tradução do clássico de Salinger assinada por Caetano Galindo que modernizou as gírias para “coisa e tal”, “sem brincadeira”, “pacas”; Dauster concorda que Galindo é um grande tradutor e tentou modernizar, mas confessa, “não gostei muito”.

Dauster traduziu seu predileto Vladimir Nabokov, também James Baldwin e é totalmente contra o “politicamente correto” das editoras que pregam que autores negros devem ser traduzidos por profissionais negros. Também traduziu Ian McEwan, Jonathan Franzen, Salman Rushdie e Philip Roth — este, o único autor que exigia que as editoras pagassem direitos autorais aos tradutores, 1% do preço de capa dos livros. “Dá uns R$ 14 a cada três meses”.

Dauster traduz pelo simples prazer de traduzir, não depende disso para viver e tem o privilégio de escolher o prazo de entrega e o título, como o livro que está nas suas mãos do americano George Saunders sobre quatro mestres do conto russo, Gógol, Turguêniev, Tólstoi e Tchekov. Seu ofício é a diplomacia e foi assim que integrou a representação brasileira no Canadá e na Tchecoslováquia, atuou na Organização Internacional do Café em Londres, renegociou a dívida externa no governo Fernando Collor, dirigiu a Vale. Hoje é consultor de empresas e presidente do conselho de administração da Taurus, maior fabricante de armas do Brasil, o que suscita uma surpresa e expõe um contrassenso, mas como não teremos Época semana que vem, não dá para perguntar.

Na última página, Larry Rother se despede falando d’ “O Brasil do Meu Coração”. O ex-correspondente do The New York Times no Brasil, autor de “Rondon, Uma Biografia” — e personagem de um famoso embate com o presidente Lula sobre aquele líquido mencionado pelo papa Francisco que os brasileiros gostam de entornar —, fala da farofa, do por do sol na Amazonia, do jeito gostoso com que os brasileiros se cumprimentam.

Fala do cordel e dos cordelistas, da água de côco verde no quiosque de Ipanema, da moqueca de caranguejo, de lugares como Puxa Faca em Roraima ou Gogó da Onça no Pará. Os orquidários de Petrópolis e Teresópolis. O Museu Goeldi no Pará. Os azulejos pernambucanos. “Viajar numa gaiola de Tabatinga até Belém, descendo o Solimões até Manaus… Passar um domingo na feira dos nordestinos no Pavilhão de São Cristóvão”.

Os prazeres de Larry Rother continuam por aqui. O prazer de folhear com calma as colunas da revista, sem que a energia acabe no meio, a página pule de repente, o texto congele, a vista se canse do celular, do tablet, e a reflexão e a memória vá pro brejo, esse prazer desta época é que está indo embora.

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Norma Couri é jornalista e Diretora de Inclusão Social, Mulher e Diversidade na Associação Brasileira de Imprensa (ABI).