Há quem tenha visto nas edições de quinta-feira (17) dos jornais O Globo, Extra e O Dia uma afinação excepcional com o interesse do governo de Sérgio Cabral Filho de desviar a atenção das conexões apuradas nos últimos dias entre policiais-milicianos e seu grupo político.
A acusação é grave. Tem cheiro de teoria conspiratória. Mais plausível é que pessoas ligadas ao Palácio Guanabara tenham dado a repórteres matérias ‘exclusivas’ selecionadas a dedo para massacrar o ex-chefe da Polícia Civil Allan Turnowski, vítima indireta da Operação Guilhotina da Polícia Federal, que levou no último fim de semana à prisão de 38 pessoas, entre as quais 30 policiais civis e militares.
É fato que as informações foram acolhidas com júbilo nas redações e a edição do material, nos três jornais, mostra Turnowski como o grande vilão da história. O mesmo que fora saudado por Cabral Filho como ‘o melhor chefe de polícia da história do Rio’. E elogiado também por seu chefe direto, o secretário de Segurança José Mariano Beltrame. Segundo alguns comentaristas, esses rapapés teriam sido uma tentativa de sinalizar para Turnowski que ele deve se manter em silêncio. Resta saber se ele vai apanhar calado.
Vejamos como os jornais deram as notícias.
1.
No Globo, Turnowski está sob chumbo grosso na primeira página, ‘acusado’ em depoimento de testemunha de receber mensalão (somando duas cotas, seriam R$ 600 mil; em um ano, R$ 7,2 milhões!). No interior do jornal, a série de reportagens reunida sob o chapéu ‘Faxina na polícia’ começa com Turnowski não mais ‘acusado’, mas julgado e condenado pela manchete da página: ‘O varejo da corrupção’. A defesa de Turnowski só aparece duas páginas depois, o que não deixa de chamar a atenção.2.
No Extra, a manchete reza: ‘Como a polícia usou a máquina do estado para montar uma milícia’. Trata-se de acusação contra o delegado Carlos Oliveira e subordinados dele. Oliveira foi subchefe da Polícia Civil, portanto homem de confiança de Turnowski, que aparece num subtítulo: ‘Aliados de Allan fora do gabinete de Martha’ (a nova chefe de Polícia).3.
No Dia, a manchete é ‘Homem-bomba de Israel veio explodir bicheiro na Barra’. Não se trata de um ‘homem-bomba’, mas de um mercenário especialista em explosivos contratado para matar Rogério Andrade. No atentado, foi morto o filho de Andrade. No interior do jornal, a manchete é ‘Série de mortes à sombra da cúpula da Polícia Civil’ (páginas 4 e 5, espelhadas). Na página 6, abaixo da dobra, Turnowski se defende da acusação de ter avisado um policial a respeito da Operação Guilhotina, o que levou a Polícia Federal a intimá-lo a depor.Os homens do ‘choque de ordem’
Um problema para Sérgio Cabral Filho é que as acusações contra o delegado Carlos Oliveira, que foi subchefe da Polícia Civil, homem de confiança de Turnowski, preso na Operação Guilhotina, levaram a vereadora Andréa Gouvêia Vieira (PSDB) a querer uma CPI sobre o papel de Oliveira e subordinados dele na Seop, a Secretaria Especial de Ordem Pública do município. Foi a Seop que promoveu no Rio o ‘choque de ordem’ (com o apoio entusiástico do Globo). Ela era dirigida pelo hoje deputado federal Rodrigo Bethlem (PMDB). Vereador entre 2001 e 2004, ele foi subprefeito na gestão de César Maia. Foi ligado também ao prefeito Luiz Paulo Conde (1997-2000).
Eleitoralmente, o ‘choque’ dado por Bethlem em 2009 e 2010 foi um sucesso. Em 2006, ele não havia passado da suplência, 40º colocado no Estado do Rio, com pouco menos de 60 mil votos. Em 2010, com 74 mil votos, ficou na 25ª colocação. E qual é o problema de Cabral Filho? Bethlem foi figura de proa na administração de seu aliado Eduardo Paes, prefeito do Rio, e integra a bancada do governador na Câmara dos Deputados.
O ‘choque’ contou com a colaboração estreita do delegado Carlos Oliveira, que foi subsecretário de Operações da Seop. Oliveira é acusado de participar do roubo de armas de traficantes para venda a uma milícia e de ter ligações com a milícia da favela Roquete Pinto, em Ramos. Levou para cargos comissionados na Seop policiais que, como ele mesmo, agora aparecem ligados a milícias e outras atividades criminosas.
Na Assembleia Legislativa, o deputado Marcelo Freixo (PSOL), que presidiu a CPI das Milícias, disse:
‘Não é possível a gente achar que é coincidência a Secretaria de Ordem Pública ter tanta relação assim com a milícia, e o mapa eleitoral das pessoas que conduzem essa lógica de ordem pública ter grande concentração de votos nas áreas de milícia. Não é coincidência! Não há coincidência na vida política.’
Dinheiro de campanha. E votos
Vejamos um comentário feito por Jorge Antônio Barros em seu blogue Repórter de Crime. Ele inspirou o título do presente texto, que se soma ao tópico ‘O financiamento (ir)regular da política‘, publicado neste OI:
‘O governador Sérgio Cabral e o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, se orgulham de ter conseguido acabar com a influência de parlamentares na nomeação de delegados e comandantes de batalhão no Estado do Rio de Janeiro. De fato, a influência política na polícia é uma das principais raízes da corrupção e do favorecimento no sistema policial. Um determinado político colocava seu protegido no comando de um quartel da PM ou de uma delegacia e esse policial passava a prestar contas ao padrinho. Muitos policiais em postos de chefia acabavam sendo obrigados a bancar até a caixinha de campanha dos políticos. E de onde vinha esse dinheiro? Obviamente, das propinas das máfias e quadrilhas que atuam nos mais diversos setores − da contravenção ao tráfico de drogas, passando por outras atividades ilegais, como pirataria, exploração da prostituição, de clínicas de aborto etc. etc.’
Um ocupante da cúpula policial fluminense foi, em anos recentes, eleito para mandato legislativo. Álvaro Lins, chefe da Polícia Civil nos governos de Anthony e Rosinha Garotinho, elegeu-se deputado estadual pelo PMDB em 2006, com excelente votação (quinto mais votado). Houve denúncia de compra de votos, mas a vida seguiu. Em 2008, Lins foi preso em flagrante pela Polícia Federal. A prisão foi revogada pela Assembleia, que acabaria cassando seu mandato. Ele foi também expulso da polícia. Responde em liberdade a processos criminais sob a acusação de receber dinheiro do crime organizado fluminense. Em 1994, quando ainda major da Polícia Militar, fora acusado de ligação com bicheiros. Seu sucessor na chefia da Polícia Civil, Ricardo Hallak, também foi preso, processado e condenado. Recorre em liberdade.
Álvaro Lins está longe de ter sido o único político que fez triangulação entre mandato eletivo, polícia e crime organizado.