Foi um baque. Aquela nota curta, na capa do Globo de sábado (6/6), chegou a mim com a força de uma pancada:
‘A polícia tailandesa afirmou que a causa da morte do ator americano David Carradine, do seriado Kung Fu, dos anos 70, pode ter sido asfixia acidental durante sexo solitário.’
Na primeira página. O título da notícia, que saiu na coluna da esquerda, bem abaixo da dobra, era ao mesmo tempo conciso e vago: ‘Morte de ator pode ter sido acidental’. Ou seja: ninguém sabe direito como o homem deu seu último suspiro. Não foi bem ali que eu tive a primeira informação de que David Carradine, o monge Shaolin chamado Caine, da série Kung Fu, grande sucesso nos anos 1970, tinha morrido. Mas foi só ali que, como as pessoas dizem, eu ‘realizei’. Um dia antes eu tinha visto alguma coisa sobre isso, entre um clique e outro na internet. Falei um ‘nossa’ em silêncio e continuei, apressado, com o que eu estava fazendo. Não parei para me entristecer. Não quis ir atrás de outros detalhes. ‘Depois eu me abato’, pensei comigo. ‘Agora não tenho tempo.’ Foi só no sábado, olhando o Globo que me dei conta. Eu tinha me esquecido, para falar a verdade. Aí, sim, levei um susto. ‘Então ele morreu mesmo.’ Fiz o meu minuto de silêncio particular. Mas aquela notícia não ajudava muito. Ela não tinha o clima de minuto de silêncio. Notícia mais esquisita.
As linhas breves do jornal não eram nada solenes. Convenhamos: ‘asfixia acidental durante sexo solitário’ não é algo a que possamos chamar de uma causa mortis digna de um mestre Shaolin. Após o baque, fiquei dividido em dois: de um lado, eu me sentia de luto e, no meu lado ‘B’, fiquei meio aceso com aquela história. Com o olho esquerdo eu transmitia meus pêsames, não aos familiares, que desconheço, mas à página do jornal que vinha me contar a ocorrência. Com o olho direito eu me intrigava, quase me divertia, entre incrédulo e morbidamente curioso. ‘Asfixia acidental durante sexo solitário.’ Mas que tipo de barbaridade é essa aí? Seria alguma piada?
Correndo atrás dos jornais de anteontem
Na segunda-feira (8/6), tentei saber mais. Embarquei numa navegação temática pelos sites jornalísticos à disposição. Um post da AP, no Globo.com, com data de sexta, dia 5 de junho, trazia mais detalhes.
‘BANGCOC – O corpo do ator americano David Carradine, mais conhecido pela série de TV dos anos 70 `Kung Fu´, foi encontrado dentro de um armário de um quarto de hotel com uma corda amarrada ao pescoço e à genitália, e sua morte pode ter sido causada por um sufocamento acidental, afirmou a polícia da Tailândia nesta sexta-feira.’
O que era aquilo? O sujeito foi parar dentro do armário? A nota prosseguia:
‘O corpo do ator de 72 anos foi encontrado na quinta-feira dentro de uma suíte de luxo do hotel Swissotel Nai Lert Park, em Bangcoc. Inicialmente, a polícia disse suspeitar de suicídio, apesar de amigos e parentes de Carradine questionarem essa teoria.
O tenente Worapong Chewprecha disse a repórteres que Carradine foi encontrado com uma corda amarrada à genitália e outra em volta do pescoço.
– As duas cordas estavam amarradas uma a outra. Não está claro se ele cometeu suicídio ou morreu por sufocamento ou insuficiência cardíaca.
A polícia tailandesa realizou uma autópsia em Carradine nesta sexta, mas o coronel Somprasong Yenthuam, superintendente da delegacia de Lumpini, que está cuidando do caso, afirmou que os resultados não estarão prontos por até três semanas, porque a causa da morte não ficou clara. Ele disse que esse tipo de atraso seria `normal´.’
Cocei a cabeça. Pelo menos o atraso era ‘normal’. O resto me pareceu inteiramente anormal. Depois, vi que a versão do armário foi descartada. O morto não tinha entrado em armário algum. A situação do defunto ficou melhor, mas a minha, não. A desinibição com que o noticiário lida com a morte seguia divertindo o meu olho direito, e escarnecendo do meu olho esquerdo, que por pouco não lacrimejou.
Segui com minha leitura em retrospectiva. Vi que Carradine chegara à Tailândia poucos dias antes, para trabalhar no filme Stretch, contou Tiffany Smith, da Binder & Associates, sua agência. Aurelio Giraudo, gerente geral do hotel em que o astro se hospedou, disse que ele fez o check in no dia 31 de maio e, uma vez instalado, ficou à vontade: conversava com os funcionários e até tocou piano e flauta no lobby em algumas noites, coisa que ‘os hóspedes gostaram muito’. O homem estava bem, parece. Com Kill Bill, de Tarantino, ele interpretou ninguém menos que o Bill em pessoa, e tinha voltado a brilhar em Hollywood. Aos poucos, a tese do suicídio perdeu força.
No dia 8, segunda-feira, uma nota da agência EFE insistiu no que passou a ser chamado de ‘asfixia autoerótica’. Deu para entender melhor. ‘As autoridades locais suspeitam que a causa da morte esteja relacionada a uma peculiar técnica de masturbação.’ Outro texto, este da Reuters, confirmou que os resultados da apuração policial ainda vão demorar.
‘`Nós estamos investigando, mas não iremos fazer qualquer suposição sobre sua morte até que tenhamos todos os fatos´, disse em uma coletiva de imprensa o tenente-general Amnoy Nimmino, vice-chefe da polícia de Bangcoc. `Temos que esperar pelas notícias do exame toxicológico, o resultado da autópsia e evidência forense. Nós saberemos tudo em mês.´’
O FBI, por iniciativa da família ou da polícia de Bangcoc, não entendi bem, vai participar das investigações. De um jeito ou de outro, o que resta, agora, é esperar.
O cowboy zen
Não há cinismo – embora pareça – no meu luto que não nega o picaresco do episódio. Sinto de fato uma tristeza doída. Eu gostava de David Carradine. O que não me impede de ver o humor com que o destino o levou, um humor que parece levar o copyright de Quentin Tarantino. Do meu ponto de vista, Carradine era maior que as quinquilharias do entretenimento que o alimentaram ao longo da vida – e que dele se alimentaram em reciprocidade. Ele ficou maior que tudo isso com sua simples presença de ator. Tinha virado um significante autônomo. Se não tivesse, não teria servido de nada em Kill Bill.
O seu personagem síntese, Kwai Chang Caine, o levou ao estrelato nas décadas de 1970 e 80, mas foi como o Bill, no Kill Bill de Tarantino, que ele mostrou sua dimensão maior. Ele encarnava a marca de gerações e mais gerações de filmes de artes marciais. Ele encarnava uma herança, com valores vivos. E representava mais. Por isso fez tanto sentido nesse filme duplo de Tarantino. Com sua narrativa de violência sobre violência – uma violência que se abastece do cinema e não do que os desavisados chamam de realidade, uma violência que é metaviolência –, Tarantino soube ser requintado, caprichoso, sutil mesmo: conseguiu buscar o gafanhoto ingênuo, que tinha ficado parado no tempo, lá, bem antigamente, para reabilitá-lo no século 21, mas em novo formato, com uma nova couraça, esta sim, bem cínica.
O Bill na pele de David Carradine é sensível e psicopata a um só tempo. Cabe bem nele a candura de Caine, uma doçura quase infantil, cabe a singeleza de um sorriso caseiro, e também cabe a truculência do Curinga de Batman, a truculência dos olhos perigosamente próximos um do outro na face de George W. Bush, a truculência do narcotráfico, do terrorismo nuclear, do capital financeiro. Bill é ameno e desumano. É aquilo em que o sonho hippie se transformou. Um papel perfeito para David Carradine. Só podia ser dele.
Voltando um pouco mais ao gafanhoto, havia nele, também, uma complexidade que o diferenciava do resto. Ele juntou dois fios que, naquela década, estavam desencapados, carregados de energia, esperneando no espaço, desperdiçando faíscas. O primeiro fio desencapado era o hippie que tinha ficado órfão das utopias derrotadas nos anos 1960. Por isso, Carradine busca na figura do monge do Oriente um pouco daquele clima ‘paz e amor’ dos anos 60, mas agora acrescido de poder de fogo, isto é, o misterioso Caine sabia dar pernadas como ninguém. O segundo fio era o cowboy, que envelhecera. Aí vem Kwai Chang Caine para vagar, errante, andarilho, pelas terras americanas: ele ressuscitou o herói solitário dos westerns.
Era, enfim, um híbrido, um brucutu espiritualizado. Andava de cabeça baixa, não pecava pela arrogância, mas não era capacho de ninguém. Humilde, sim, mas indefeso, não. Um ídolo gerado pela máquina da ficção industrializada, não há dúvida, mas portador de uma tensão real, tão real que ficou.
Agora ele morre assim, aos 72 anos, enforcado, ou meio enforcado, não sei, num quarto de hotel em Bangcoc. É estranho, é esquisito, é doloroso, é engraçado. Esses astros, seus prazeres mundanos e suas técnicas asfixiantes… Haja semiótica.
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Jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP