‘Não foi uma eleição, mas um posto de identificação. Aposto qualquer coisa que, se as cédulas eleitorais não tivessem os nomes de Bush e Kerry mas a pergunta ‘Você assiste à Fox TV ou o lê o NYTimes?’, o colégio eleitoral teria se dividido de maneira exatamente igual.’
A curiosa constatação é do veterano Thomas Friedman, do New York Times. Publicada na sexta-feira (4/11) em nossos três jornais nacionais, com diferentes traduções, indica que o profundo cisma nos EUA – compreendendo o conflito entre os tementes e os não-tementes a Deus – inclui as fontes que alimentam suas crenças.
Significa que a grande rachadura no colosso americano, talvez a maior desde a Guerra da Secessão (1861-65), origina-se ou completa-se (dá no mesmo) na fragmentação do seu sistema de informação e referências.
À primeira vista parece um fenômeno positivo, já que a diversidade de opiniões enriquece o debate e capacita a sociedade para escolhas corretas. Numa segunda leitura, este racha revela uma situação tão ou mais preocupante do que o próprio resultado eleitoral porque nunca tantos e tão importantes veículos americanos manifestaram-se de forma tão candente em favor de um candidato. E este candidato foi o derrotado John Kerry.
Isto não deve ser visto – ao que se pode inferir da asserção de Thomas Friedmann – como se a Fox News tivesse sido a vencedora do pleito midiático ao apoiar Bush. Significa que a grande imprensa americana, as redes de TV aberta, os principais comentadores e o grosso da indústria cultural não conseguiram ser ouvidos ou entendidos nos estados vermelhos – a América republicana, conservadora, profundamente crente e, por isso, submissa às emanações da Casa Branca [veja, nesta rubrica, o texto ‘Todos vermelhos’].
Significa também que nessa América majoritária não colou o discurso racional, analítico, contemporâneo, humanista e humanitário da mídia que optou pelo candidato democrata. Nem foi esta América permeada pelo discurso indignado dos astros do show-biz (cujo expoente foi o cineasta Michael Moore).
O beco sem saída do Iraque não impressionou a América vermelha mas pode ser que tenha reagido à veemência daqueles que pretendiam repetir a rebelião dos anos 1960-70. Quanto maior a ferocidade dos ataques a Bush e quanto maior a adesão da imprensa mundial à candidatura de Kerry, maior a solidariedade ao comandante da cruzada contra as forças do mal. A figura do lonely warrior, o combatente solitário, é mais próxima do imaginário americano do que a do cidadão do mundo.
Ouvidos moucos
A divergência entre a mensagem que a mídia ‘democrata’ emitiu e a mensagem captada pela audiência republicana foi causada por um desajuste retórico, e por algo mais profundo e grave: um grande truncamento de códigos, signos e sintonias. Os ‘valores morais’ que dividiram o país, na realidade, estavam relativizados por um desentendimento anterior, primal: o temor a Deus. A mídia não percebeu que a teologia poderia se impor à ideologia.
A América falou – foram as primeiras palavras de Bush – mas a América não quis ouvir o que lhe dizia sua imprensa, aquela cuja função é falar e fazer pensar. Este diálogo de surdos entre os mediadores e mediados pode ser a matriz de uma grande tragédia política. Naquele país-continente, tão diversificado mas capaz de se encontrar nas páginas do jornal entregue a cada manhã na porta de casa, de repente apareceram vazios, espaços em branco. Brechas de credibilidade. O cimento da informação e da reflexão – a imprensa – perdeu sua capacidade adesiva. Jornais foram para um lado, leitores para outro.
Caminhamos para um impasse semelhante ao da República de Weimar antes da chegada de Hitler ao poder? Certamente não, mas convém manter viva aquela experiência traumática.
A mídia precisa antenar-se: perceber tendências, falar para todos, ser entendida por todos. A radicalização pode alienar parte do público e torná-lo presa fácil do radicalismo em direção contrária. A imprensa não pode embarcar na canoa da simplificação por mais que os políticos recorram a ela. A tentação simplista pode ser fatal para uma instituição cuja razão de ser é a existência de complexidades.
Nesse sentido, a capa da edição do semanário inglês The Economist (30/10) merece uma reflexão. Sem qualquer cerimônia e contrariando a tradicional fleuma britânica, Bush é designado como incompetente e Kerry como incoerente. No editorial, o veredicto: apesar do histórico compromisso conservador, ‘com o coração pesado’ a revista optava por John Kerry.
O democrata representava mudança. Mudança não apenas de equipe ou do grau de envolvimento no Iraque. Para a Economist, John Kerry significava um período de disciplina econômica e um compromisso nos programas sociais, sem os quais a América poderia sucumbir diante dos perigos.
A reacionária Economist preferia o liberal Kerry porque este, ao contrário de Bush, não estava amarrado à direita cristã. Não foi ouvida pelos compradores de seus 450 mil exemplares nos EUA e certamente não será ouvida na Inglaterra, onde se opõe tenazmente ao trabalhista Tony Blair.
Perdeu a parada? A Economist fez o que lhe cabia: usou a plataforma e a postura conservadora para se colocar contra um ultraconservador. Contrariou o raciocínio de Thomas Friedmann e falou para todos. Se não foi ouvido por alguns, continuará como referência para a maioria.