‘Não posso aceitar, contudo, as pesadas acusações feitas ao JB no qual você publica artigos todas as semanas e é pago por isso. Se estava incomodado com o Jornal do Brasil de hoje deveria ter interrompido sua colaboração há muito tempo…’
Este é o fecho do e-mail de José Antônio do Nascimento Brito ordenado por Nelson Tanure, comunicando a suspensão da colaboração deste Observador no Jornal do Brasil [leia aqui íntegra da mensagem]. É, na realidade, o extrato de uma abominável ideologia na qual se assenta a maioria das ações de lesa-imprensa do panorama atual.
Esta ideologia baseia-se na falácia de que o jornalista profissional não tem compromissos morais. Ao aceitar um salário, desliga a sua consciência e despluga o seu senso crítico. Ao trabalhar e ganhar, perde o direito de exercer o seu discernimento. Proibido de cogitar e existir, abdica da sua humanidade. Deixa de ser, não é. A remuneração, no lugar de converter-se num processo de troca e aperfeiçoamento, assume-se como odiosa, desumana e degradante servidão.
Porém, o jornalista sem senso crítico é apenas meio jornalista – talvez até menos do que isso, amputada a parte vital da sua função. Há uma visível relação de causa e efeito entre a desqualificação da mídia contemporânea e o processo de neutralização da consciência jornalística.
Os ‘novos cães de guarda’ identificados por Serge Halimi são os jornalistas que submetem-se integralmente à lógica de que o salário compra tudo, mesmo o que não está à venda.
Compreende-se o espanto de Tanure & Brito ao descobrirem que alguns jornalistas não aceitam a focinheira espiritual e não abrem mão do inalienável direito de ser cidadão, fazer parte da humanidade, enxergar, aquilatar, sentir. Para eles, jornalistas são peças de hardware, cujo software eles é que fornecem.
Dever de ofício
Quando em 1998 o JB estava prestes a ser engolido por Ary de Carvalho, de O Dia, o primeiro dos grandes predadores da era moderna, este Observador, então colunista na Folha de S.Paulo, obteve autorização do seu publisher, Octávio Frias de Oliveira, para oferecer gratuitamente seus artigos ao jornal moribundo.
Frias resmungou mas, generoso, autorizou. José Antônio Nascimento Brito sabia que o articulista oferecido gratuitamente participava do projeto do Observatório da Imprensa e estava comprometido com a idéia de incluir a crítica da mídia no debate público. Aceitou e ainda fez um discurso comovido. Isto foi na sexta-feira, dia 10/10/1998. No dia seguinte, os artigos da Folha começaram a ser publicados também na página de opinião do JB.
Em 1999, novamente por causa de um texto publicado no Observatório da Imprensa, este Observador foi cortado da Folha (na honrosa companhia de Eduardo Gianetti da Fonseca). Coisas da vida. E o JB, aliviado momentaneamente do aperto financeiro, passou a pagar-lhe um pro-labore.
Estes detalhes aparentemente insignificantes servem para contestar a solerte argumentação ensaiada no e-mail de Tanure & Brito. A direção do jornal sempre soube que um dos seus colunistas dos sábados tinha compromissos públicos ostensivos, anteriores e superiores. Não era favor ou privilégio, isto faz parte dos procedimentos vigentes em toda a indústria cultural onde o profissional que não é exclusivo, e tem plena liberdade de oferecer seus serviços e sua capacidade a outros. Mal comparando: D. Eugênio Salles, outro colaborador do JB no mesmo dia, também não é obrigado a submeter os seus sermões e prédicas aos donos do jornal onde escreve há algumas décadas.
No caso deste Observador, o JB estava comprando cerca de 5 mil caracteres semanais a serem entregues até as 18 horas das sextas-feiras. Jamais reclamaram da qualidade, estilo ou teor das opiniões. E sempre respeitaram integralmente o seu direito de engajar-se em outras atividades jornalísticas e, sobretudo, manifestar-se sobre a mídia. Mesmo porque qualquer jornalista, desde que comprometido com o aperfeiçoamento democrático, tem o dever de participar dos debates sobre a imprensa. Com ou sem autorização dos superiores. É o seu investimento na melhoria do processo jornalístico.
Diferenças claras
Ao contratar um opinionista, o dono de jornal não comprou um escravo como Xanto adquiriu Esopo para obrigá-lo a vocalizar suas opiniões. A participação de um jornalista num jornal não o torna solidário nem parceiro da empresa editora nos negócios que faz. E se os negócios que faz comprometem a respeitabilidade do jornal, cabe ao profissional a obrigação de reclamar. Onde e como considerar que isso poderá ser útil. Silenciar significa participar da avacalhação. É preciso não esquecer que o famoso mea-culpa do New York Times só aconteceu porque repórteres e editores não foram suficientemente exigentes, conforme constataram os próprios autores da penitência.
Desnudados no ato de trair os seus leitores em benefício do casal Garotinho, Tanure & Brito tentam emplacar um retrocesso intelectual e moral às custas do desemprego e do subemprego vigentes no mercado. Aviltam as relações de trabalho no ambiente jornalístico, impingem suas pífias convicções políticas e contribuem decisivamente para desacreditar o sistema midiático brasileiro no momento em que muitos empenham-se em recuperá-lo.
Não será este episódio que deterá os predadores, mas episódios como este servem para estabelecer diferenças.