Na repercussão do assassinato da missionária norte-americana naturalizada brasileira Dorothy Stang, a mídia tem insistido na expressão ‘ausência do Estado’.
O que significa isso?
Que seria o bastante a estrutura formal do Estado, de um ponto de vista conceitual, que remete a Montesquieu e seu Espírito das Leis (1748), envolvendo a divisão dos poderes legislativo, executivo e judiciário? Certamente que não é assim, a menos que se acredite num congelamento da História, quando as relações sociais teriam cessado e, por isso, sínteses novas deixado de ocorrer.
A alegada ‘ausência de Estado’ certamente é verdadeira, mas não no sentido restrito que se pretende dar a essa expressão.
O Estado moderno, desde que parcelas significativas das diferentes sociedades foram alfabetizadas, não pode, de forma alguma, ser separado da imprensa, da mídia, do jornalismo que se pratica nas sociedades. E se esta proposição for aceita, a conclusão é de que a ‘ausência do Estado’ nessas áreas de violência e injustiça equivale a ‘ausência de imprensa’, no sentido de sua obrigação de denunciar as desestruturações sociais fermentadoras de situações de caos.
Um leitor ou leitora poderia facilmente argumentar que as guerras de narcotraficantes nos morros do Rio de Janeiro, por exemplo (mas não só no Rio), refutam essa hipótese, já que a mídia está freqüentemente relatando ocorrências no front desses enfrentamentos. Este é um caso onde a lógica fácil pode conduzir a conclusões rápidas, mas profundamente equivocadas.
Para deixar discussões urbanas como os confrontos dos morros para uma outra ocasião, vamos dizer apenas que o fato de a mídia tocar no assunto não significa que esclareça ocorrências mais profundas sobre esse mesmo assunto. Ou, em uma palavra apenas, a mídia oferece soluções tópicas para enfermidades sociais sistêmicas – para tirar partido da analogia, ligadas a uma falência múltipla de órgãos.
A conclusão, neste caso, é que a mídia está despreparada para retratar a realidade que tem diante dos olhos e as razões para esta impotência são múltiplas.
Tristes tribos
Para começar do óbvio, as empresas jornalísticas, com as complicações que costumam abrigar as empresas familiares, tocam seus negócios com uma contabilidade de botequim. Concentram-se na venda do que dá lucro imediato, do que tem mais saída – no caso dos botequins, cerveja e cachaça.
A analogia aqui é que as redações só dão despesas, especialmente os salários mais condizentes com maior experiência profissional. E a solução óbvia, pela óptica de botequim, é a dispensa dos bons repórteres substituídos por quem está em início de carreira.
Jovens repórteres iniciantes podem muito bem ser grandes talentos. Mas precisam de maturação, da convivência com seus colegas mais experientes, como ocorria na estrutura das guildas, onde os aprendizes se formavam com os mestres num sistema harmonioso de aprendizado, desmantelado abruptamente pela Revolução Industrial.
Jovens repórteres precisam de tempo para ler parte dos clássicos em qualquer área do conhecimento, e com isso atinar para um certo senso de realidade. Não a realidade redutora forjada pela alienação da produção incessante, com ausência de crítica criadora. Mas a realidade plena de estranhamento.
Jovens repórteres, ao menos nas regiões que abrigam as principais empresas de comunicação, desconhecem, como a imensa maioria da população, a realidade do ‘Brasil profundo’, aquele que abriga, por exemplo, grupos indígenas em diferentes estágios de relação com a sociedade exterior. Desde povos que mantêm certo afastamento, por múltiplas e diferentes razões, a nações em acelerado estágio de degeneração e que, nem por isso, perderam inteiramente sua identidade. São mortos-vivos, vagando entre suas concepções mutiladas, sem encontrar sentido em nada, precipitando-se na violência e no alcoolismo.
Neste último caso, já estamos falando das mortes – noticiadas ao longo dos últimos dias – de crianças de diferentes nações amontoadas como fardos agrícolas na reserva indígena de Dourados, a 220 quilômetros de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, uma das capitais da produção de soja, commodity estratégica do agribusiness.
Nas poucas vezes em que trata do tema – em meio a problemas que só podem, quando podem, ser resolvidos parcialmente, por ausência de uma postura preventiva – os trabalhos da imprensa sensibilizam quem não perdeu a compaixão. É o caso da manchete de página do Estado de S.Paulo na edição de domingo (27/2, pág. A11), ‘Tristes tribos dos indiozinhos famintos’, com foto em que a garotinha caiowaá relata seu mundo sem palavras, pelo olhar.
Como disse aos jornais David Stang, debruçado sobre o túmulo de sua irmã Dorothy Stang, em Anapu, no Pará: ‘Que tipo de humanidade permite esses acontecimentos?’
Razão de ser
O Mato Grosso (e o Mato Grosso do Sul, que se formou posteriormente) é um caso de brutalidade histórica. As terras por ali foram conquistadas, em boa parte, na boca do fuzil por tiranos para quem a lei nunca passou de ficção. Essa região, de onde nações indígenas inteiras desapareceram no século passado, concentrou durante muito tempo focos de violência sobre índios e posseiros antes que essas ocorrências fossem transferidas para a Amazônia convencional, já que são parte da Amazônia Legal.
Crianças famintas, como a indiazinha caiowaá, têm, nas áreas em que estão confinadas, barracos miseráveis de um metro de altura por outros dois de largura e comprimento, cercados por campos verdes de soja cultivados com tratores e pesticidas, ferramentas da agricultura moderna.
O contraponto de Stang: ‘Eu gostaria de saber por que essa ganância, essas mortes [na Amazônia] continuam’
Povos indígenas do Mato Grosso, que legaram brasileiros como o marechal Cândido Mariano Rondon (talvez esse nome signifique pouco ou nada para uma considerável parcela de brasileiros que sabem todos os detalhes do Big Brother Brasil, da trama das novela das 8 ou das brigas de egos no castelo de Chantilly) são povos que durante muitos séculos foram os únicos donos daquelas terras. Até a chegada dos invasores, com suas armas de fogo, foices, machados, isqueiros e gado. O boi no lugar do homem.
Quem se interessar por um relato sensível e de generosidade intelectual sobre o ‘Brasil profundo’ que em certa época começava bem perto de São Paulo, ou, mais especificamente, envolvia a cidade de São Paulo, entre outras poucas capitais do Brasil encontrará beleza e tragédia em Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas – de 1825 a 1829, de Hercules Florence, desenhista da expedição Langosdorff pelo Brasil.
Aqui estão, delicadamente registradas, todo um conjunto de violências explícitas e potenciais, como bombas-relógios que explodem agora, quase dois séculos depois, e observados por Hercules Florence.
Sem fundamento histórico, sem leituras como a viagem de Florence, é impossível uma localização crítica por carência absoluta de referências cardeais. Mas certamente ainda não é tudo. Talvez o grande problema da mídia, particularmente do jornalismo impresso, neste momento, esteja na sua incapacidade de responder à chegada da internet e a possibilidade em tempo quase real de informação por esse meio.
Para justificar sua razão de ser, a mídia impressa deve fazer jornalismo interpretativo, contextualização histórica de acontecimentos, retomando a idéia de processo, de sentido e coerência históricos. Sem essa perspectiva não há possibilidade de recriação, mesmo que todos os diretores de Redação sejam substituídos e todos os projetos gráficos, reformulados.
Amerídios literatos
A questão que afeta a mídia impressa neste momento é, digamos, de filosofia midiática, de fundação de novas referências; de epistemologia, não de reformas superficiais.
A contradição é que, talvez, na maior parte dos casos, os detentores do poder no interior das redações sejam mentalidades do passado, de mãos vazias para semear o futuro, restritos a um jogo político perverso e improdutivo, ao menos enquanto possibilidade de bem-estar social. Daí o uso omisso e freqüente nos últimos dias da expressão ‘ausência do Estado’. Como se o Estado moderno prescindisse de mídia enquanto, digamos, o quarto poder, dimensão que historicamente não ocorreu a Montesquieu.
Para esse gestores da mídia, e de alguma maneira para todos nós, falíveis em nossa determinação de uma justiça elementarmente justa, de um desejo que parece cada vez mais utópico de instalarmos uma noção de Cosmos e humanidade, valerá a pena ouvir as palavras de Sereburã, ancião xavante, recolhida no belíssimo livro de fotografias de Rosa Gauditano, Raízes do Povo Xavante (140 pp, Studio R e Associação Xavante de Pimentel Barbosa, patrocínio da Caixa Econômica Federal e Prefeitura do Município de São Paulo, 2003):
‘Sou velho e não quero ser diferente do que sou. Quero continuar como índio que sou. Não estou de acordo com tudo o que envolve os jovens, mas é bom que nossos filhos aprendam a língua dos brancos para dialogar quando houver conflito. Para não acontecer como foi com os antigos, que em vez de se comunicarem, se matavam. Só podemos nos organizar e defender se entendermos a estrutura do branco, para não sermos enganados’.
Como se pode ouvir de Sereburã, o famoso chefe sioux Touro Sentado, herói da batalha de Little Big Horn, não é o único literato entre os ameríndios. Nem o único a profetizar o futuro com a amargura de quem conheceu profundamente o passado.