Durante séculos, a imprensa orgulhou-se de ser insubstituível. Era o motor, o maestro e o filtro da sociedade. Elegia e derrubava presidentes, ditava moda e construía mitos. A partir de meados da década de 1990, com a popularização da internet, a irrevogável evolução tecnológica universalizou o conhecimento. Nasceram os sites de busca, os blogs e as mídias sociais. Profetas vaticinaram: livros e jornais impressos estão destinados a desaparecer porque o futuro é digital. Cidadãos comuns converteram-se em emissores de notícia, com textos curtos e fragmentados. Twitter, Facebook e Orkut se apresentaram como novas fontes de informação quebrando as barreiras entre a notícia e a sociedade. E até os jornalistas passaram a usar essas ferramentas como matéria-prima para reportagens e artigos.
Na semana passada, uma nova farsa do mundo virtual veio à tona: uma jovem lésbica síria que mantinha um blog com fortes críticas ao governo do presidente Bashar Al-Assad era, na verdade, um estudante de pós-graduação americano que vive na Escócia. Pouco antes de revelar a mentira, o estudante chegou a inventar que a autora do blog “Garota gay em Damasco” havia sido sequestrada a mando do governo. No início de junho, uma outra face do uso das mídias sociais entrou em pauta. O jornalista Bill Keller, que ocupou durante oito anos o cargo de editor executivo do jornal The New York Times, publicou um artigo criticando o uso indiscriminado da tecnologia nas relações pessoais. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (21/6) pela TV Brasil discutiu o impacto das novas mídias na sociedade e no trabalho da imprensa.
Para discutir o tema, Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro o jornalista e escritor Muniz Sodré. Mestre em Sociologia da Informação e Comunicação e doutor em Letras, Sodré é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional. É autor de mais de 30 livros na área de Comunicação. Em São Paulo, o programa contou com a presença do jornalista Caio Tulio Costa, que foi o primeiro ombudsman da imprensa brasileira. Caio Túlio trabalhou na Folha de S.Paulo durante 21 anos. Foi um dos fundadores do UOL, do qual foi diretor geral até 2002. Ex-presidente do iG, atualmente é consultor de mídias digitais e professor de Ética Jornalística.
Informação superficial
Em editorial, Dines criticou a preferência da sociedade pela velocidade em detrimento da profundidade. “A contribuição mais forte para o fim dos jornais começou a ser oferecida pelos próprios jornais, quando anunciaram formalmente o seu próximo fim. O episódio mais recente deste suicídio coletivo aconteceu há poucos dias quando o Guardian, um dos jornais mais importantes e bem sucedidos da Inglaterra, anunciou que passaria a investir maciçamente na sua versão digital, que absorveria o noticiário quente. A versão impressa ficaria com as análises, opiniões e a contextualização do que seria veiculado pela internet”, comentou Dines.
Antes do debate no estúdio, a reportagem produzida pelo programa mostrou a opinião da jornalista Míriam Leitão, que atua tanto na imprensa convencional como nas novas plataformas. Para Míriam, o jornalista precisa ter consciência de que a informação veiculada por profissionais de imprensa nas redes sociais tem um peso maior do que as demais notícias que circulam no mundo virtual: “A estrada existe para todo o mundo, mas nós somos os profissionais do volante nesta estrada”.
Amante dos livros em formato tradicional e da palavra impressa, a jornalista explicou que vê com bons olhos a criação de novas plataformas, mas que torce para que as bibliotecas continuem a ter espaço nas casas. “Digamos que acabe este livro, esta idéia que foi inventada por Gutenberg, e que os livros sejam só eletrônicos daqui em diante. O livro é sempre a alma, a ideia, e isso vai continuar para sempre”, avaliou.
O que é real?
A coordenadora de Jornalismo da UFRJ Cristiane Costa contou que, durante a Guerra do Golfo (1990-1991), o perfil de um conceituado blogueiro chamou a atenção da opinião pública. Sob o pseudônimo de Salam Pax,o internauta abastecia seu diário virtual com informações de dentro de Bagdá, conflagrada pelos bombardeiros, enquanto os jornalistas das mídias tradicionais se limitavam a acompanhar as tropas aliadas. Apesar de as informações do blog “Where is Raed?” serem verdadeiras, a opinião pública desconfiou da existência do blogueiro porque parecia irreal que um arquiteto, gay e junkie morasse em Bagdá.
Na era das novas tecnologias, o diferencial, na avaliação do jornalista Arnaldo Cesar, é a qualidade da informação, independente plataforma em que é publicada. “Para você ter conteúdo de qualidade, tem que ter boas fontes de informação e a informação tem que ser checada e rechecada antes de ser impressa ou publicada. Eu acho que o New York Times e os jornais no mundo todo ficaram meio perdidos em relação a isso e hoje já começam a encontrar um caminho”, disse o jornalista. Leão Serva, que foi diretor de Jornalismo do iG e hoje é diretor de Redação do Diário de S.Paulo, comparou as informações que circulam nas redes sociais às cartas anônimas. Nas duas situações é necessário checar a fonte, apurar e ouvir o outro lado da questão. “Eu acho que esses mesmos cuidados são necessários, embora em uma versão digital”, disse Serva.
Convivência pacífica
As novas tecnologias não se sobrepõem aos meios tradicionais, na avaliação de Luiz Garcia, articulista do jornal O Globo: “A imprensa sempre sobreviveu aos novos meios de comunicação. A quantidade de informações que são passadas à opinião pública é sempre muito grande, mas cada um tem a capacidade de escolher e selecionar o que acha melhor. Não creio que algum tipo de mídia diferente, novo, que pode fazer muito sucesso inclusive pelo fato de ser novo, pode afetar as características próprias das mídias mais antigas”.
De Nova York, o correspondente Lucas Mendes comentou a atuação de Bill Keller no NYTimes. “Foi sob o comando dele que o jornal decidiu cobrar pelo acesso online para compensar a brutal queda no faturamento da publicidade. ‘Sem uma nova receita, o fim do Times é inevitável’ – quem diz é o próprio editor-executivo”, contou o jornalista.
No debate ao vivo, Dines perguntou a Caio Túlio Costa se, quando assumiu a direção do UOL, imaginava o rápido desenvolvimento tecnológico que se seguiria, a ponto de ser decretado o fim do jornalismo impresso. “Quando a gente criou o UOL, não tínhamos a noção exata do que estávamos fazendo”, contou Caio Túlio. A ideia, segundo ele, era tentar reproduzir no Brasil o sucesso das grandes provedoras daquele momento, como AOL e a Compuserve. Intuitivamente, a equipe já tinha em mente que para a iniciativa ser bem sucedida era preciso um grande número de pessoas conectadas ao site para garantir o faturamento. Os assinantes e a publicidade deveriam sustentar o provedor.
Verdades e mentiras
Caio Túlio relembrou casos amplamente divulgados em que a mentira estava presente na mídia tradicional, como o do ex-repórter do NYTimes Jayson Blair, que admitiu publicamente, em 2003, que plagiava textos e inventava informações em suas matérias. “Isso faz parte do jogo e evidentemente, o jogo está muito maior agora, com muito mais alcance, com quase uma impossibilidade de controle. E nós, que somos formados nessa mídia tradicional, somos loucos para controlar. Acho que a questão que se coloca é essa: esse controle ficou muito mais difícil e muito mais complexo”, avaliou o jornalista.
O fator humano acaba fazendo com que situações como essas ocorram em qualquer plataforma. “Nós, enquanto jornalistas, trabalhando tecnicamente a informação e agora tendo a concorrência de pessoas, cidadãos – bem intencionados e mal intencionados – de instituições e de empresas, continuamos enfrentando os mesmos problemas de sempre”, sublinhou Caio Túlio.
Para Muniz Sodré, a tecnologia é fascinante porque conserva enigmas e incertezas. “Eu acho que frequentemente perdemos de vista determinadas coisas porque tendemos a avaliar os objetos culturais isoladamente. Foi como o rádio e a televisão. Na verdade, todos esses objetos e dispositivos formam, para mim, um paradigma em que se tenta duplicar o universo anterior”, analisou o professor. Esta duplicação se dá na direção da velocidade, necessária ao sistema capitalista. “O valor ‘ético’ passa a ser o rápido, o veloz. Não é o profundo, o humano o autêntico. Essa duplicação e essa aceleração matam o sentido”, afirmou Muniz Sodré.
A busca pela novidade
O professor acredita as novas tecnologias da informação põem em pauta a crise do sentido e da palavra. E a imprensa é um “pálido reflexo” dessa crise mais profunda. Jornalistas e consumidores estão fascinados pelas novas tecnologias, na avaliação de Muniz Sodré. Muitas vezes, buscam os mais recentes lançamentos sem saber ao certo para o que servem aquelas ferramentas. “Há uma coisa mais grave. É um pouco como a indecisão de um cientista subatômico diante de um objeto subatômico: não sabe se é onda ou se é partícula. Em um nível macro da história, nós, diante de um fato, não sabemos quais são os padrões de verdade, de realidade, de imaginário. E isso parece não importar mais”, observou Sodré.
Para o professor, a sociedade está “surfando na onda das aparências” e não tem os meios de controlar o que é verdade. O jornalismo sempre ofereceu a possibilidade de estabelecer a distinção entre real e irreal porque havia um pacto de credibilidade implícito. Sem uma pausa na transmissão das informações, os dados apenas se multiplicam, sem uma reflexão aprofundada. “Se esse pacto se rompe, essa informação tão abundante, tão prolífica, é tão fascinante quanto o aparelho novo, mas não vale nada”, disse Sodré.
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A mídia veloz
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 598, exibido em 21/6/2011
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
Há quanto tempo fala-se na morte dos jornais? Desde que a imprensa se transformou em quarto poder.
O rádio e a televisão foram os primeiros carrascos da mídia impressa, mas ela sobreviveu galhardamente graças ao seu poder de transmitir ideias. Agora apareceu um vilão ainda mais poderoso: a internet, que está deixando de ser um meio de comunicação – como foi o telefone – para transformar-se em veículo de informação.
A contribuição mais forte para o fim dos jornais começou a ser oferecida pelos próprios jornais quando anunciaram formalmente o seu próximo fim. O episódio mais recente deste suicídio coletivo aconteceu há poucos dias, quando o Guardian, um dos jornais mais importantes e bem sucedidos da Inglaterra, anunciou que passaria a investir maciçamente na sua versão digital, que absorveria o noticiário quente. A versão impressa ficaria com as análises, opiniões e a contextualização do que seria veiculado pela internet.
Esta divisão do leitorado em dois grupos – um que sabe e outro que entende – ocorre simultaneamente com o espetacular crescimento das chamadas redes sociais, como o Facebook e o Twitter, cujos fiascos em matéria de informação não parecem prejudicá-las. Ao contrário, só as reforçam.
Estamos diante de um vale-tudo que envolve não apenas ferramentas e tecnologias. O confronto que assistimos e do qual somos ativos participantes dá-se entre concepções divergentes de progresso. A humanidade perde alguma coisa quando troca profundidade por velocidade.