A imprensa brasileira é tão viciada em declaração quanto o cidadão americano em petróleo. Repórteres são treinados para citar fontes, se possível entre aspas, até para afirmar que a luz vermelha, num semáforo, significa ‘pare’. A dependência, em todos os sentidos, foi mais uma vez demonstrada no material sobre o acordo de salvaguardas entre Brasil e Argentina. Por esse acordo, concluído na quarta-feira (1/2), o governo argentino está autorizado a adotar medidas, unilateralmente, contra a importação de produtos brasileiros, quando julgar urgente uma intervenção desse tipo.
O governo brasileiro concordou com isso, ao assinar o protocolo de ‘adaptação competitiva, integração produtiva e expansão equilibrada e dinâmica do comércio’ – nome inventado para oficializar o protecionismo no interior do Mercosul. O detalhe foi pouco destacado na maior parte das coberturas, embora um dos objetivos principais dos acordos de comércio, quando sérios, seja evitar ações unilaterais ou dificultar severamente sua adoção.
A maior parte do material publicado na quinta-feira, dia 2, foi baseada em afirmações e interpretações de autoridades, empresários e fontes não identificadas. A apresentação do miolo da cobertura, em todos os jornais, seguiu mais ou menos a ordem de importância atribuída a cada tópico pelas autoridades negociadoras – as argentinas, interessadas em justificar as salvaguardas; as brasileiras, empenhadas em dizer que fizeram bom negócio.
As autoridades foram citadas, nas matérias de abertura, não só para justificar e louvar os termos do acordo, mas também para explicar detalhes perfeitamente auto-explicáveis no texto.
Essa dependência seria compreensível se cópias do protocolo não fossem disponíveis naquele dia. Poucas horas depois de anunciado o acordo, o diário Clarín, de Buenos Aires, divulgou no seu sítio da internet a íntegra do acordo. Eram 17 páginas de texto principal e 8 de anexos. O documento era bastante explícito para ser entendido sem referência a complexos documentos anteriores.
Apesar disso, foi pouco explorado pela maior parte dos jornais. A referência a certos detalhes dependeu de alguns empresários entrevistados, que evidentemente haviam tido acesso ao texto. Os leitores mais curiosos devem estar perguntando, até hoje, se os repórteres haviam lido o acordo que estavam noticiando.
Arrocho misterioso
Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo usaram as palavras ‘arrocho’ e aperto’ nos títulos das matérias sobre o resultado fiscal do ano passado, publicadas no dia 31 de janeiro. O superávit primário do setor público, estimado em 4,84% do Produto Interno Bruto (PIB), foi geralmente descrito como conseqüência de uma gestão severa das finanças de governo, em todos os seus níveis. Apesar da economia de 93,5 bilhões de reais, a dívida líquida do setor público equivalia, no final de 2005, a 51,6% do PIB. Um ano antes a relação correspondia a 51,7%.
Todos esses dados foram fornecidos pelo Banco Central e explicados, em Brasília, numa entrevista coletiva de rotina. Economistas e empresários entrevistados lamentaram o corte de investimentos, por eles apontado como condição do resultado fiscal. Lamentaram, também, a insistência na política de juros altos. Os juros, segundo afirmaram, alimentaram a dívida e inutilizaram o sacrifício.
O relatório mensal do BC sobre o desempenho fiscal não fornece detalhes sobre o gasto público. Sem nada que chame a atenção para o gasto efetivo, é fácil associar as idéias de superávit primário – a economia feita para pagar juros – e as noções de arrocho, aperto e sacrifício.
Mas pouco tempo antes o governo federal havia divulgado seu desempenho orçamentário em 2005. Embora os quadros mostrem apenas uma parte da situação fiscal, porque não incluem as contas de Estados e municípios, são suficientes para indicar um fato muito interessante: os gastos do ano passado foram bem maiores que os de 2004.
De um ano para outro, o superávit primário do governo central caiu de 2,79% para 2,72% do PIB. No mesmo período, suas despesas cresceram 16,3%, em termos nominais, e passaram de 17,1% para 18,2% do PIB. Os gastos com pessoal e encargos aumentaram de 4,74% para 4,77% do PIB. As de custeio e capital, de 5,16% para 5,76%. Note-se: a produção pode ter sido pouco dinâmica, mas cresceu e o gasto público federal continuou a expandir-se mais velozmente que a economia.
Pergunta: onde está o arrocho?
Se o investimento foi insuficiente, isso se explica muito mais pela estrutura do gasto público e pela qualidade da administração da administração do que pelo aperto orçamentário.
Estado e Valor, este com maior destaque, incluíram, no material editado, referências à elevação do gasto e à baixa qualidade do ajuste fiscal, citando basicamente comentários de Fábio Giambiagi, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A maior parte da grande imprensa contentou-se com a descrição do chamado arrocho e da insuficiência de investimentos.
Mais uma vez a cobertura foi dirigida principalmente pelo piloto automático, o mais produtivo e mais barato dos jornalistas brasileiros.
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Jornalista