O jornalista Ali Kamel, em artigo publicado em O Globo (23/1), levantou uma questão que, em sua opinião, precisa ser confrontada: ‘O jornalismo é um campo de batalha de ideologias ou é uma forma de conhecimento da realidade?’
Para começar o texto com uma defesa de sua isenção ao discutir o assunto, Kamel argumenta que devido à ‘distância das eleições, que acirram este debate, a discussão pode ser travada com menos paixão’.
Com este argumento, Kamel parece querer demonstrar que sua análise será fria, isenta, eqüidistante. Uma leitura um pouco mais apurada da sua frase pode nos levar a outra conclusão que derruba por terra toda a retórica utilizada na seqüência do texto para responder à pergunta retórica do seu começo.
Leitores e seus jornais
Quer dizer que agora, distante da eleição, podemos discutir o assunto, pois no período eleitoral ele seria discutido com paixão, subentendendo que esta paixão influenciaria a análise do assunto, levando os debatedores, influenciados por suas predisposições, para lados diferentes? Enfim, a resposta não seria objetiva, nem clara, devido ao calor do momento.
Pois bem, se, ao analisar um assunto como esse, não é possível tratá-lo sem paixão no momento eleitoral – entendendo que a paixão parta de uma predisposição dos analistas – o que poderá ser dito sobre a rotina jornalística de escolha de pautas, enfoques de matérias, edição de material no calor eleitoral? Todas são definidas sem paixão? Não há influência das predisposições, tanto por parte dos jornalistas responsáveis pela produção, como do grupo responsável pela sua publicação?
O observador Luiz Weis, em ‘Quando o óbvio não é óbvio para todos‘, publicado neste Observatório (24/1), faz uma análise das colocações de Kamel e finaliza com uma brilhante frase: ‘Não são os leitores que escolhem os seus jornais, mas são os jornais que escolhem os seus leitores.’
Lógica simplista
E como os jornais realizam essa escolha do público? Abordando assuntos do interesse do público que pretendem atingir. Porém, mais que escolher o assunto, também é preciso abordá-lo de acordo com o interesse desse público. Assim, qual o público que os grandes jornais pretendem atingir? Pobres analfabetos? Com certeza, não. O público destes veículos normalmente se encontra nas classes A e B, talvez C. Possuem curso superior, ou pelo menos uma educação média. Não são beneficiados pelo Bolsa Família, mas pagam muitos impostos.
Para este público, não interessa material destacando os pontos positivos do Bolsa Família. É mais interessante uma matéria apontando os erros daquele programa. A segunda opção parece ser mais correta, pois com o fim da assistência do Bolsa Família, o governo pode afrouxar a arrecadação e, logo, diminuir a carga de impostos.
É uma lógica simplista, mas que funciona na cabeça das pessoas. Basta conversar com um integrante típico da classe média brasileira, leitor da Folha de S.Paulo ou do Estado de S.Paulo. Para ele, quem recebe o Bolsa Família não é o necessitado, desprovido de qualquer outro benefício que a sociedade proporciona, mas o vagabundo que ‘mama nas tetas do governo’. E que ele, que paga altos impostos, é quem sustenta esses vagabundos.
Mostrar, escrever
Para tornar mais claro meu argumento, farei uma analogia com nosso dia-a-dia. Imagine que você, leitor (vou utilizar um exemplo masculino), pretende conquistar a grande paixão da sua vida. O que você faz? Elogia suas roupas, diz que ela é inteligente e simpática, concorda com suas opiniões. Você estará no caminho certo da conquista.
Agora, imagine que você faz o inverso. Ela está vestida com uma roupa que te desagrada. Ao encontrá-la, logo de cara você fala que a roupa dela está fora de moda. Se ela estiver usando perfume, você diz que é alérgico. Ela emite uma opinião sobre um assunto e você discorda, chegando ao ponto de quase chamá-la de burra. Você está destinado a ficar sozinho.
Assim também funciona com os veículos de comunicação. Eles dizem, mostram ou escrevem o que seu público quer ouvir, ver ou ler. E o que a maioria dos leitores dos grandes jornais queria, na época dos escândalos do governo? Que era o maior roubo da história da República e coisa e tal. Faça-se sua vontade, então.
Pausa entre novelas
O que intrigou a grande mídia foi o resultado das eleições. Estariam errados sobre a opinião do seu público. Será que seu público era a favor do governo? Não, lógico que não. O que os veículos de comunicação, principalmente a mídia impressa, esqueceram foi que o seu público é apenas uma parcela da população, uma parcela pequena. Que a grande maioria da população não lê jornal nem revista.
Já sei que neste momento meu atento leitor vai argumentar que o Jornal Nacional de Ali Kamel é consumido por toda a população. Claro que é consumido, mas como um copo de água entre os pratos principais servidos toda noite pela emissora: as telenovelas.
A maioria dos espectadores do JN assiste ao informativo como uma pausa entre os folhetins eletrônicos. Diversos estudos já demonstram a baixa capacidade absorção do público em relação a informações transmitidas pela televisão. Se você quiser comprovar este argumento faça um teste com um parente seu que assista as três novelas globais e ao JN diariamente.
Ele saberá te dizer o que está acontecendo nas três novelas, citando personagens e emitindo opiniões sobre todos os temas tratados nas novelas. Peça para ele te dizer cinco, apenas cinco, notícias mostradas no JN daquela noite. Serão poucos os que conseguirão responder.
Isso permite que o JN não se preocupe tanto em agradar ao público, abrindo espaço para que tente impor uma visão diferente à dele. Claro, que ainda assim, o JN irá se socorrer de matérias sobre o nascimento do elefante no zoológico, o que agradará seu público.
Finalmente, para defender seu ponto de vista, Ali Kamel faz uma pergunta retórica colocando de um lado a batalha de ideologias e de outro o conhecimento da realidade. A forma como o autor faz a questão passa a idéia de que uma situação exclui a outra, o que não é verdade.
Representação da realidade
Jornalismo é uma batalha de ideologias e também uma forma de conhecimento da realidade. Porém, é preciso que essa realidade conhecida não seja a realidade como ela é, mas uma representação da realidade.
Na obra Ceci n’est pas une pomme (‘Isto não é uma maçã’), René Magritte demonstrou claramente que aquilo que os meios de comunicação apresentam não é realidade, no máximo uma representação da realidade. Uma maçã tem cheiro, gosto e textura próprios. O quadro de Magritte tinha apenas uma imagem. Não era uma maçã, mas uma representação visual de uma maçã.
Da mesma forma, o jornalismo e tudo o que é transmitido pelos meios de comunicação não é a realidade, mas uma representação da realidade. E ao público consumidor dessa representação não é dada a possibilidade de conhecer a realidade propriamente dita, mas apenas aquela representação.
No momento dessa representação é que se encontra a batalha de ideologias. Retornando ao calor das eleições, imagine a seguinte situação: a primeira pesquisa apontou que o candidato X tinha 30% das intenções de voto e o candidato Y, 20%. A segunda pesquisa aponta que X subiu para 35% e Y para 26%.
Um jornal alinhado ideologicamente com o candidato X poderia publicar a manchete: ‘Aumenta a intenção de votos para X’. Um jornal alinhado com o ideologicamente com o candidato Y poderia publicar a manchete: ‘Diferença entre X e Y cai’. As duas manchetes seriam verdadeiras, porém com enfoques diferentes, beneficiando determinadas posições. Seria a realidade? Seria. Mas sob um determinado ponto de vista. Ou seja, o público conheceria a realidade, mas representada de acordo com um ponto de vista.
Para concluir: alguém seria capaz de afirmar que a maçã representada no quadro Ceci n’est pas une pomme de Magritte é uma maçã boa ou uma maçã podre? Não. Tudo o que podemos dizer é que Magritte preferiu representar a maçã por um lado aparentemente bom. Quanto ao outro lado, não sabemos e nunca saberemos.
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Jornalista, mestre em Comunicação e Linguagens e professor universitário da Escola Superior de Ensino Empresarial e de Informática (Eseei), Curitiba, PR