Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O jornalismo e o dever da cobrança

Acontecimentos jornalísticos ao longo da semana passada deixam certa atmosfera nebulosa, seja a respeito da própria atividade desenvolvida pelo jornalismo atual, seja pelo modo estranho com o qual se dá a condução da política no país.

Numa ponta se encontra a mídia que parece, na ânsia desesperada de vender seu produto, tomada por absoluto descontrole. Na outra, situa-se um governo que investe o que pode e o que não pode para tentar travar a atividade parlamentar de desempenhar o legítimo papel de fiscalizadora dos atos públicos, principalmente quando, de modo declarado e comprovado, vem à tona fato revelador de corrupção numa empresa estatal. Vamos, pois, tratar das duas esferas (a jornalística e a governamental) na perspectiva de que uma se contamina com a outra.

Jornalismo ou irresponsabilidade?

As revistas não fizeram por menos. A revista Época (edição de 23/5/05) expunha, na capa, a chamada ‘Corrupção’, com o reforço apelativo da sublegenda nesses termos: ‘Deputados chantagistas, prefeitos ladrões e servidores públicos desonestos’. Ainda arrematava com a pergunta: ‘Por que a política brasileira está assim?’.

IstoÉ (edição de 25/5/05) trazia, como matéria de capa, igual apelo denuncista: ‘As contas secretas da Igreja Universal’. Como texto suplementar: ‘Documentos inéditos mostram como é desviado o dinheiro do dízimo e apontam o senador Marcelo Crivella (PFL-RJ) como operador de empresas offshore nas Ilhas Cayman’. Vale registrar que, na capa, saiu a sigla PFL, embora, na reportagem, constasse a sigla partidária correta (PL). Seja como for, erro de informação na capa é jornalisticamente inaceitável, por mais que a miopia (ou mesmo a cegueira) impere. A mesma IstoÉ ainda continha, sem destaque na capa, outra reportagem de igual perfil denuncista: ‘O golpe do senador’. Nela o acusado é o senador Paulo Octávio (PFL-DF).

Em meio ao clima de devassa prenunciado pelas revistas semanais, eis que surge, na edição de 24/5/05, o exemplar (nada exemplar) do Jornal do Brasil destacando, com a ênfase própria das manchetes, a seguinte frase: ‘PT reage ao ‘peru bêbado’ com ‘tática do gambá’’. Complementava a manchete o seguinte texto: ‘Sem superar a irritação com a crítica de Fernando Henrique, Genoino acusa tucanos de espalhar mau cheiro’. Inacreditável! Todavia, lá estava o delito jornalístico cravado com todas as letras, deixando claro que a marca JB, historicamente alcançada por méritos, nada mais representa nos atuais tempos.

O que, afinal, se depreende dos exemplos aqui reunidos? Deduzimos que o país vive a plenitude da democracia política, em perfeita sintonia com a eficiente vigilância jornalística? Por outra, será que o país se encontra mergulhado num completo embaralhamento de princípios e projetos, a ponto de nenhum setor ter noção de limite para o exercício das funções?

A julgar pelas manchetes das revistas, o Brasil ingressou na rota do total descontrole. Onde se toca, detecta-se corrupção. A considerar o alarde dado pelo Jornal do Brasil, o escalão máximo da República está infectado pela mais nefasta doença, à altura de tornar o país desgovernado e entregue a ‘peru bêbado’ e ‘gambá’? Mas o fato existiu, retrucará o editor. Sim, mas a opção de conferir tamanho impacto é decisão editorial. E aí se dá o delito.

Quem conhece o perfil tanto do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso quanto o do atual, Luiz Inácio Lula da Silva, bem sabe quanto a ambos apraz certo tom galhofeiro, a título de provocação. Claro, ideal seria que ocorrências dessa ordem não existissem, mas existem e apenas expressam o que há de menor em descompasso com a importância dos cargos. Não noticiar também não é o caso. Todos os veículos de informação registraram, porém fizeram-no com comedimento, exceto o Jornal do Brasil. Que lástima!

A cobertura da CPI

Até o presente momento, os jornais, de um modo geral, têm tratado com estranha moderação tudo que envolveu a aprovação para a instalação da CPI dos Correios. É bem verdade que nada de absolutamente novo surgiu, seja quanto aos propósitos dos interessados na abertura, seja da parte governamental no tocante aos interesses em abafá-la. A população brasileira já acompanhou inúmeras ‘novelas’ com idêntico enredo. A diferença (e radical) é que o ‘autor’ ‘contratado’ para ‘escrever’ a novela atual marcou sua trajetória ‘autoral’ exatamente por conceber enredos tão originais quanto diametralmente opostos.

Na oposição, o PT, agora no governo, se caracterizou por liderar todas as CPIs, sob a alegação da prerrogativa parlamentar, independentemente de apurações que outros órgãos realizassem. Também é verdade que o PT promovia atos públicos com o slogan ‘Fora FHC!’, em nítida atitude de confrontação contra um governo legitimamente constituído pelo voto. Assim, é de estarrecer que, transformado em governo, se valha rigorosamente dos mesmos métodos e argumentos do anterior.

A imprensa teria o dever de assumir rígida cobrança, frente a comportamentos absolutamente contrários àqueles outrora intransigentemente defendidos e reclamados. Todavia, não é o que se vê, afora esparsos artigos. Enganam-se aqueles que apostam apenas na resposta nas urnas. Há um momento a partir do qual se dissemina em tal nível o descrédito que a resposta nas urnas se torna mero gesto burocrático, porque obrigatório.

Uma sociedade majoritariamente calada ou inerte pode querer comunicar algo bem diferente do que o silencio e a inércia. Uma imprensa omissa ou tendenciosa para certas situações e sensacionalista ou irresponsável para outras, em muito colabora para um ‘basta!’ acompanhado de algo bem diferente do inofensivo voto. Não sei se o atual governo tem a dimensão do que jogou fora.

O que, na verdade, se percebe é o avançar de um processo degradado no qual paulatinamente se vão esvaindo os parâmetros de prudência, respeito, sensatez, tolerância, ante o afã de, na área jornalística, nada se medir em troca de mais unidades vendidas e, no campo político, nada se economizar em troca de reservas de territorialidade a qualquer preço.

Em tal quadro, a vida da nação se esgarça perigosamente porque seu desfecho a ninguém dará o lucro imaginado. Matérias sensacionalistas e irresponsáveis se somam à pequenez com que chefes de Estado se tratam. Tudo explícito. Nenhuma reserva de pudor.

Alguém, na imprensa ou na política, se pergunta como o cidadão comum faz a leitura dessas cenas? Creio não haver mínima preocupação a respeito. Como é próprio de um país que há muitas décadas abdicou da construção de um projeto de nação, todos vivem a culminância de cada momento, de cada situação.

Ninguém pensa no efeito da narratividade. Todos agem como se em cada recorte tudo tivesse seu início e seu próprio fim. No dia seguinte, viram-se as páginas e a história se renova. Aí reside o perigo. Em população de milhões, não são todos guiados por essa suposição, a despeito de aqueles que detêm algum tipo de intervenção considerarem o contrário.

O dever da imprensa

A imprensa tem a obrigação de encontrar um caminho através do qual se possa efetivar correta interpretação do sentimento majoritário da população e este deve ser capaz de refletir a indignação com responsabilidade. Para tanto, deve abordar os temas e os fatos com equilíbrio, sem comprometer a verdade quando esta se encontra à vista de todos. Se, ao contrário, a imprensa assume o perfil de indisfarçada saia-justa, ela se torna cúmplice e não intérprete, perdendo o vigor daquilo que a deve sustentar.

Os meios de comunicação de massa no Brasil ainda não aprenderam a andar com as próprias pernas. Vivem nas dependências do Estado. No regime da ditadura, a justificativa era a repressão. Correto. Na democracia, a autonomia crítica é trocada por favorecimentos econômicos, seja na forma de verbas publicitárias oficiais, seja por amortecimento de dívidas. Também correto, alguém dirá. Bem, em sendo verdade, qual será a saída?

Uma coisa é certa: a única resposta que a sociedade não pode receber e, menos ainda, perceber é: ‘Não há saída’. Como, porém, saber se a sociedade já não está recebendo ou percebendo tal resposta? Vale a pena apostar na incerteza do momento seguinte, ou ainda há tempo para substituir a aposta por uma atitude ética, por tantos segmentos populacionais dela desejosos?

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha – Rio de Janeiro)