Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O jornalismo e o fim dos jornais

Não contem para minha mãe que sou jornalista. Prefiro que ela continue pensando que toco piano num bordel. Engraçado até que é, mas o ditado popular espanhol tem lá um quê de nostalgia, além de nos contar sobre o estado de espírito de uma das grandes grifes do jornalismo do século 20. Juan Luis Cebrián, fundador e primeiro diretor do El País, este que é um dos melhores e mais importantes diários do mundo, não hesita em apelar para o humor quando se trata de refletir sobre o futuro da imprensa na era digital. Combina tiradas irônicas com raciocínios minuciosos e previsões realistas, valendo-se da longa experiência vivida em redações. ‘Isso aqui? Diga adiós…’, brada, esgrimindo no ar um exemplar do jornal que se transformou no símbolo da transição democrática espanhola e na pá de cal do franquismo. ‘Teremos que dizer adiós para este El País.

Mesmo golpeando a entrevistadora na alma, Cebrián avança com seu arsenal de argumentos para explicar por que teremos de aceitar que jornais impressos, tal como os conhecemos hoje, são típicos produtos da Revolução Industrial e, queiramos ou não, já fomos transferidos para um outro tempo pela Revolução Digital. Esta conversa de altas emoções aconteceu há uma semana, em São Paulo, por onde Cebrián passou para lançar o livro O Pianista no Bordel (editora Objetiva), conjunto de dez reflexões sobre jornalismo, democracia e solavancos tecnológicos. Antes, o autor esteve em Brasília para entrevistar o presidente Lula, justamente por encomenda do jornal que ajudou a criar em 1976.

Leia aqui um dos capítulos do livro, ‘Gacetilleros, gansos y embaucadores’, em espanhol.

‘Não estou afirmando que o El País vai morrer. Ele está na rede, com uma clientela global em torno de 17 milhões de internautas, e no papel tenderá a ser mais seletivo e analítico’, tranquiliza a torcida. Em O Pianista no Bordel, Cebrián cultiva o gosto pelo ensaísmo, admitindo ser um gênero que casa bem com seu momento de vida. É que hoje o escritor de romances premiados como La Rusa e La Isla del Viento não anda com tempo para a ficção. Depois de ter comandado o jornal espanhol por 12 anos e de fazer escalada em cargos executivos, chegou a CEO do Grupo Prisa, um gigante europeu de mídia, do qual faz parte o El País. Continua no board do grupo, mas também tem assento no conselho deliberativo do jornal francês Le Monde, hoje com parte das ações comprada pelos espanhóis. É muita agitação para um ficcionista carente de sossego.

Ao repassar neste livro momentos de sua trajetória no jornalismo, Cebrián vai recuperando personagens e momentos históricos de seu país, ao mesmo tempo em que confessa pequenas, porém insuperáveis alegrias. Como a de não mandar mais para o Ministério do Interior aqueles dez exemplares que a censura franquista exigia ter em primeira mão, todo santo dia, antes que se iniciasse a distribuição do jornal. Um belo dia resolveu não mais despachar os exemplares. Então um burocrata no ministério ligou para a redação, contentou-se com explicações protocolares e ali se teve a prova de que o regime estava de fato combalido.

Medida da paixão

Uma das reflexões mais instigantes que faz poderá ser confundida com a defesa do jornalismo como gênero literário. E é mesmo, escancaradamente. Tanto que fecha o livro com um capítulo cujo título é Escritores de Jornal, em que insiste ser impossível imaginar a obra de grandes nomes da literatura como Hemingway, Camus e García Márquez sem levar em conta que todos tiveram passagens como redatores, editorialistas ou correspondentes. ‘Quanto a Vargas Llosa, já repeti muitas vezes a anedota de que, lá por volta do ano de 1964, ele se levantou de sua cadeira de redator da Agence France-Press, situada num velho edifício parisiense no número 13 da Place de la Bourse, para que eu assentasse ali o meu traseiro’, escreve Cebrián, que se tornaria chefe de redação ainda muito jovem. E cheio de rigores formais no trato com o jornalismo, comentam os que com ele trabalharam.

Histórias a perder de vista temperam as páginas de O Pianista no Bordel, ao mesmo tempo em que demonstram o esforço extremo de um homem de imprensa que em breve completará 66 anos, ainda apaixonado pelo cheiro da tinta e do papel, mas compelido a adaptar-se às tecnologias que rendem milhões e milhões de páginas eletrônicas, nas quais nós jamais sujaremos os dedos. Cebrián parece preparado para tudo, inclusive receber romances pelo celular, o que certamente abalará os membros da Real Academia Espanhola, da qual faz parte. Mas não abre mão do capital humano. Acredita que enquanto houver jornalistas, produtores, escritores, roteiristas, enfim, enquanto houver criadores com paixão suficiente para traduzir nossos desejos e estados de espírito, então estaremos salvos. E o jornalismo sobreviverá no exercício cotidiano da liberdade.

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Parte da sua carreira na imprensa se deu como jornalista combativo e influente. Outra parte como executivo de um grande grupo de comunicação. Ao refletir sobre os impasses da imprensa hoje, quem fala mais alto – o jornalista ou o executivo?

Juan Luis Cebrián – Eu me tornei um executivo com o passar do tempo, e fui me envolvendo com as questões do grupo, mas a verdade é que sou um executivo de uma empresa de comunicação, não de um banco ou de uma empresa de engenharia. Ao menos no meu caso, o executivo não modificou o jornalista. Fora isso, um executivo também precisa de tempo para pensar, daí o fato de eu ter aceitado o convite do meu editor para escrever estes ensaios sobre jornalismo, aproveitando reflexões feitas em conferências, mas gerando novas também. Escrevi e organizei o livro em três meses no ano passado, antes que começasse o verão europeu. Confesso que hoje estou sem tempo e sem a necessária solidão para fazer ficção. Mas a disposição para o ensaísmo continua. Escrevo sempre que posso, quando estou em aviões, quando volto para casa, enfim, faço uso de muitos truques para continuar com meus artigos e ensaios.

No livro, você retrata a passagem da censura institucional para a liberdade de imprensa na Espanha. Mas dá a entender que houve um período meio regressivo no governo José Maria Aznar (1996/2004). Afinal, a transição espanhola está encerrada?

J.L.C. – Em termos políticos, temos uma democracia estabilizada. Isso se faz com a chegada ao poder de Felipe González, um socialista, e se confirma na vitória seguinte da direita, com Aznar, vitória pelo voto, e não pelo golpe. Depois, voltamos ao socialismo com Zapatero, mais uma prova de que tudo funciona bem. Mas a liberdade é sempre um bem escasso. E a democracia, ameaçada até pelos sistemas que a defendem. Portanto, não poderemos dizer que conseguimos um sistema de liberdade plena, e que está tudo feito, quando sempre há tudo por fazer. Em outro livro, desenvolvo melhor a ideia de que a democracia não é uma ideologia, mas um método. Há uma tendência nos países latinos, sobretudo nos setores de esquerda, a defini-la de modo ideológico. Disputas entre governantes, parlamentos, juízes, partidos e meios de comunicação também podem parecer regressivas, mas fazem parte dos aspectos formais da democracia. Aznar foi regressão? Pode ter sido sob vários aspectos, mas ele teve participação na alternância de poder, o que é algo importante.

Mas a relação do El País com Aznar não era serena.

J.L.C. – Verdade. E natural, até, Já escutei em debates que as transições democráticas na América Latina foram difíceis porque os países não contaram com um jornal como El País, que se transformou, ele próprio, no emblema de um processo político. Ouvi muito jornalista latino-americano se queixando disso. Bobagem. A verdade é que os meios de comunicação tendem a ter, sempre, uma relação conflituosa com o poder. Porque fazem parte dele. A ideia de que o jornalismo é o ‘quarto poder’ me parece absurda. Nós, jornalistas, pertencemos ao establishment desde que se fundou o jornalismo moderno. E os meios de comunicação compõem a institucionalidade de democracia representativa. Somos parte dessa estrutura, para o bem e para o mal. O que está mudando é o exercício do poder. Hoje há pressões para que se adote a democracia direta, feita de consultas, plebiscitos, enquetes online, e tudo isso é muito complicado.

Por quê?

J.L.C. – Porque no fundo a internet é um fenômeno de desintermediação. E que futuro aguarda os meios de comunicação, assim como os partidos políticos e os sindicatos, num mundo desintermediado? Do início ao fim da última campanha presidencial americana, circularam pela web algo como 180 milhões de vídeos sobre os candidatos Obama e McCain, mas apenas 20 milhões haviam saído dos partidos Democrata e Republicano. As próprias organizações políticas foram ultrapassadas pela movimentação dos cidadãos. Como ordenar tudo isso? Não sei. Ao mesmo tempo, estamos assistindo a um processo de radicalização das ideias políticas, que afeta o jornalismo. O que dizer do alinhamento da Fox com os republicanos para fazer oposição a Obama? O envolvimento da imprensa com a política é um fenômeno antigo. O que é novo é a instantaneidade, a globalidade e a capacidade de transmissão de dados que, por si só, configura um poder fabuloso.

Há diferença entre estar mais informado e estar bem informado?

J.L.C. – Vejamos, nossos leitores, hoje, são melhores que os do passado. Faço essa observação me guiando pelo processo histórico da humanidade, que se beneficiou do progresso em diferentes setores. Mas considere que hoje existem 2 bilhões de internautas no mundo, ou seja, um terço da população planetária já tem acesso à rede. Há 200 milhões de páginas web à escolha do navegante. Na rede, você diz o que quer, quando quiser e a quem ouvir, portanto, o acesso à informação aumentou de forma espetacular. Isso é fato. Só que, paradoxalmente, vamos de encontro a um modelo de concentração: 90% das buscas estão no Google, 80% dos navegadores de internet são propriedade da Microsoft e 90% dos vídeos postados moram no YouTube.

Estudiosos se perguntam se o jornalismo online vai preservar os valores do jornalismo da era moderna, num tempo em que reputações estão sujeitas a virar pó instantaneamente, num blog qualquer.

J.L.C. – Posso lhe dizer que sou uma vítima da difamação online. Na Espanha, a rede está ocupada pela extrema direita, que é sempre muito cáustica. Os chamados confidenciales, pretensamente noticiosos, são blogs que mentem, caluniam, sabotam, sem qualquer apuração. Esse fenômeno é típico de um mundo sem hierarquias, como o da internet. E nós, acostumados ao mundo piramidal, com instituições fortes, o Estado, a Igreja, os partidos, enfim, com ordem estabelecida, agora temos que nos achar nessa imensa rede onde todos mandam e ninguém obedece. A sociedade democrática se move pela norma, que nos conduz à lei. No mundo virtual, a norma não conduz à lei, mas ao software. Ou seja, quem tem software controla a norma. Isso já se nota no ‘governo do Google’, que não respeita praticamente nenhuma das legislações internacionais sobre propriedade intelectual, direitos de privacidade, nada disso o afeta.

Esta pergunta já virou um mantra, mas é preciso fazê-la: qual será o futuro dos jornais impressos, na sua opinião?

Os jornais, tal como os conhecemos, se acabaram. Adiós… (diz em tom teatral, balançando no ar um exemplar do El País). Não significa dizer que deixarão de existir. Esse adiós resulta tão somente da constatação de que os impressos pertencem à sociedade industrial, e não estamos mais nela. Entramos na sociedade digital. No ano passado, cerca de 600 jornais fecharam as portas nos EUA, alguns deles com muita tradição. Há cidades americanas que simplesmente ficaram sem o seu jornal local, o que chega a ser traumático. Em geral, jornais nascem defendendo bandeiras políticas e, ao se manterem à custa das receitas publicitárias, preservam sua independência. Como esse modelo ficará? Embora a edição digital do El País venha crescendo bastante, eu não posso lhe dizer que se trata só de uma bem-sucedida transposição do impresso para o online, porque não é verdade. São veículos diferentes. Gastamos horas e horas de discussão para saber se devemos ou não cobrar por nossos conteúdos na internet ou oferecê-los de graça. A esta altura do jogo, me parece uma pergunta sem sentido. O que nos cabe perguntar é que tipo de jornalismo queremos ter na rede. Não está claro.

Seria possível uma investigação jornalística na internet como a de Watergate?

J.L.C. – Por que não? O caso de Monica Lewinsky apareceu na internet e quase derrubou um presidente. Há investigações importantes em curso na web. Como há novas maneiras de informar. Hoje, as melhores imagens que tenho visto, do ponto de vista jornalístico, estão saindo dos celulares de amadores, e não das máquinas dos fotógrafos profissionais. Há um terremoto no Chile e as primeiras imagens que recebemos vêm de cidadãos anônimos. E o que dizer de reportagens feitas por leitores? Extrapolando esse raciocínio, um jornal de 300 mil leitores tem potencialmente 300 mil redatores. Quem sabe, se soubermos lidar bem com esta situação, poderemos garantir a sobrevivência dos nossos diários…

Se a informação pode ser captada e distribuída por qualquer pessoa, o jornalista torna-se um tipo descartável. É isso?

J.L.C. – Ao contrário, teremos de investir em capital humano na rede se quisermos fazer diferença: ter bons jornalistas, gente com preparo para enfrentar operações globais. Mas é preciso mudar nossa forma de pensar. Nós continuamos a fazer jornais como se fôssemos o centro do mundo. Obama ganhou as eleições porque teve dois ou três editoriais favoráveis no New York Times ou porque contou com uma avassaladora campanha na internet? Creio que já me livrei da dúvida de se a internet é uma ameaça ou uma oportunidade. Estou convicto de que é uma oportunidade. Mas tenho uma visão europeia, de quem vem enfrentando muitos problemas e precisa reagir. Os jornais brasileiros vão indo bem. Também há dados apontando que na Índia e no Japão os jornais estão crescendo, ou seja, ainda não chegamos ao fim do mundo (ri). Enquanto isso, vamos nos acostumando à ideia de que os impressos são vistos como produtos que podem levar a danos ecológicos. Se todos os indivíduos no mundo tiverem acesso a jornais e livros nos patamares dos países desenvolvidos, as florestas da Amazônia somem em dez anos. Eis aí um aspecto positivo da sociedade digital.

Em seu livro, você ressalta que jornais tradicionais foram marcas que resistiram ao passar do tempo, preservando anseios e valores até civilizatórios.

J.L.C. – São marcas fortes, que resistiram a muita coisa. Mas, do que se fala hoje? De Google, Microsoft, Yahoo, Facebook, Twitter, marcas que nunca existiram no campo analógico. Elas nem precisaram de campanha publicitária de lançamento, ou seja, nunca vi um cartaz dizendo ‘compre Google’. Entramos nele porque as portas estavam abertas. E há um aspecto desconcertante a considerar: nenhuma dessas marcas nasce de um processo convencional, tendo uma estrutura por trás. Todas foram boladas por estudantes em quartos, sótãos e garagens das casas paternas, ou em dormitórios de universidades. Todas. Isso já reflete uma mudança cultural impressionante.

Idiomas socializam, portam legados históricos, firmam identidades culturais. Como eles sobreviverão no mundo online, onde já reina uma língua web, esquisita, mas compreensível em escala global?

J.L.C. – Se pensarmos em termos de culturas dominantes e dominadas, vamos ter de admitir que a da web não foi imposta pelo poder das armas, mas pela tecnologia. E está afetando o uso do idioma. Por outro lado, adotar todos esses neologismos, clic, blog, chat, post, bit, web, internauta e por aí vai, dá a sensação de pertencer ao ciberespaço. Também é importante. Ainda assim, creio que os espaços linguísticos, tal como os entendemos, podem ganhar relevância. Fez muito bem o Brasil em estabelecer um acordo ortográfico que unifica a língua, pois se há 190 milhões de brasileiros, há outros tantos milhões de falantes do português em lugares como Angola, Moçambique, Macau ou Portugal mesmo, totalizando um mercado linguístico imenso. Vejo como uma boa oportunidade o Brasil globalizar suas publicações não só para o mundo que fala português, mas estendendo também ao mundo que fala espanhol. Se temos alguma dificuldade para entender o que vocês falam, não temos para ler o que vocês escrevem. E há uma cultura em comum. Sempre digo que Portugal não se separou da Espanha, somente da Galícia. E fez bem (ri).