A ida do astronauta Marcos Pontes até a Estação Espacial Internacional trouxe mais uma vez à baila a imaturidade com que tratamos os assuntos científicos no país. A maioria das coberturas, alimentadas por fontes oficiais, abusaram do ufanismo. Um nacionalismo exacerbado, que mais lembrava o integralismo de Plínio Salgado e seu ‘anauê’ do que um trabalho jornalístico crítico e com algum esboço de isenção. O fato de um brasileiro ir ao espaço, além de alimentar o marketing político esgarçado do governo federal, trouxe o que há de pior em nossa formação: o eterno complexo de inferioridade e a necessidade ilimitada de auto-afirmação como povo.
O primeiro tranco para atravancar as empresas de comunicação interessadas na cobertura veio dos russos. Para participar da entrevista coletiva, cobrariam 2,5 mil dólares de cada órgão de imprensa e raríssimos foram os que desembolsaram essa soma, inspirada na nova visão capitalista da antiga União Soviética. Então a saída seria apelar para a crítica barata, o lugar-comum, ou buscar reverter a sina de eternos Macunaímas. A saída mais fácil foi resgatar a fórmula de criar celebridades e vestir o piloto tenente-coronel Marcos Pontes como um herói nacional.
Compromisso desdenhado
Enquanto grande parte da imprensa se fartava em buscar detalhes da vida pobre do menino de Bauru que chegou literalmente ao estrelado, a paralisia cerebral deixou de afetar alguns lúcidos e conscientes de uma bela cobertura jornalística. Um dos exemplos deste diferencial foi a BBC Brasil. Enquanto pouquíssimos repórteres e editores percebiam que o próprio Pontes passou a se autodenominar ‘cosmonauta’ – exclusividade de quem é treinados pela Agência Espacial Federal Russa – foi a agência inglesa que buscou a palavra da Nasa a respeito do embarque do brasileiro.
Sem precisar falar textualmente que o governo Lula se aproveitava deste momento para tomar fôlego das denúncias que assolam sua administração, a BBC mostrou que Pontes era tido como um passageiro comercial rumo a Estação Espacial, algo comum nas atividades espaciais da Rússia. Numa brilhante apuração, foi ouvir diretores da Nasa, onde o brasileiro foi treinado, e mostrou que o motivo da súbita troca de denominação de astronauta para cosmonauta não era um acaso ou fruto do momento. Era, na verdade, a abertura de uma profunda crise entre as agências espaciais do Brasil e dos Estados Unidos.
A partir daquele instante, o militar Marcos Pontes era praticamente banido do quadro de astronautas da Nasa e dava-se como encerrado um ciclo que mal começara para o Brasil no circuito das viagens espaciais. Um preço muito alto, que terá juros altíssimos com o passar dos anos. Algo incomparável aos 10 milhões de dólares gastos, principalmente se somados os descréditos arrebanhados ao longo da década de 1990 e neste início de século quanto à falta de compromisso brasileiro em honrar os acordos internacionais no setor, como o da participação na construção da Estação Espacial Internacional.
Olhar curto
Como não bastasse perder toda a credibilidade com a Nasa – onde o astronauta-cosmonauta passou todo seu período de treinamento e ainda teve que ouvir reclamações sobre a falta de seriedade do Brasil em cumprir seus acordos –, a imprensa foi brindada com uma pérola do presidente da Agência Espacial Brasileira, Sergio Gaudenzi. Ele veio até os jornalistas e reconheceu o óbvio ao dizer que realmente inexistia qualquer ganho científico na ida do brasileiro ao espaço, mas isto era compensado pela imensa visibilidade dada ao Programa Nacional de Atividades Espacias (PNAE).
Faltou ao presidente Gaudenzi complementar seu raciocínio e dizer, por exemplo, que essa façanha nacional já tinha sido cumprida satisfatoriamente com a explosão do Veículo Lançador de Satélites (VLS), em 2003, e a morte de 21 pessoas. Ali sim se mostrou ao mundo o nível de excelência de nosso programa espacial e o tratamento diferenciado que o governo federal e sua agência espacial davam a esse projeto.
Infelizmente, ele se esqueceu do ditado popular ‘não se esconde o diabo deixando de fora o rabo’. Como na fábula do Joãozinho e o Pé de Feijão, o garoto sofredor de Bauru, da maneira mais piegas possível, chegou ao espaço com alguns grãos no bolso. A historieta do marketing político associado agora ao tão maltratado setor científico do país foi à única pedra que os jornalistas encontraram para atirar contra a vidraça governista. Até os 10 milhões de dólares gastos, algo insignificante perto dos mensalões e acordões entre Executivo e Legislativo, serviram para esse propósito.
Pedras tinham à vontade, mas só seriam identificadas num jornalismo de apuração séria, contextualizada e cuja consciência crítica estivesse sendo seu norteador. Mas estávamos e estamos longe disto também. Interessante mesmo é como nós, os profissionais de imprensa, nos acostumados a olhar apenas para o que está a um palmo na frente do nariz. Esquecemos que existe um horizonte imenso a ser explorado, mas a miopia da mediocridade nos impossibilita ver mais longe.
Lógica politiqueira
Para quem acompanhou a trajetória de Marcos Pontes da seleção até a finalização de seu treinamento na Nasa, pode realmente chamá-lo de herói. Mas somente por razões extremamente particulares, por inúmeras dificuldades que ele viveu em sua bem-sucedida passagem pela Agência Espacial dos Estados Unidos. Suas notas médias sempre foram bem acima de seus colegas de turma, ele enfrentou ainda um grave problema familiar no período de testes e perdeu sua mãe.
Na tentativa de complicar ainda mais o quadro, um dos dirigentes da Agência Espacial Brasileira, enciumado com o destaque de Marcos Pontes, tentou proibir suas vindas ao Brasil sem comunicação e autorização prévia dos burocratas de Brasília. Buscaram cercear o militar brasileiro de todas as maneiras, inclusive com o corte de verbas de passagens aéreas. Algo que a imprensa se esqueceu de investigar ou de anexar ao currículo do novo herói tupiniquim.
Foram surpreendentes os efeitos positivos desse processo, muito mais pela interferência e ordenamento caótico do que pela lógica politiqueira. De repente, milhares de jovens estudantes começaram a se despertar para o mundo científico, a ler sobre diversos assuntos e questionar seus professores sobre o que é espaço, microgravidade, viagens interplanetárias – enfim, descobriram o universo a partir dos ‘feijões mágicos’ germinados no espaço por Marcos Pontes.
Pelo menos existe, neste momento, uma geração que poderá no futuro questionar com mais sabedoria os rumos dos programas científicos do Brasil.
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Jornalista pós-graduado em jornalismo científico